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A Celebração de Ma`at

Rubi Rodrigues - 01/09/2003

A Celebração de Ma`at

 

 Esta experiência foi vivenciada na tarde de 30/08/2003. Eu acabara de despertar da sesta e ainda deitado meditava sobre as atrofias perceptivas que acometiam o homem moderno, em razão do modo científico de pensar, que cindia o humano em matéria e espírito: particularmente a nossa propensão a racionalizar tudo e conseqüentemente, a nossa dificuldade de comungar, por inteiro, de nossos rituais e celebrações, tornando-nos mais expectadores passivos, que verdadeiros celebrantes.

 

 

Os nossos estudos da antiguidade Egípcia já nos tinham convencido que a doutrina e os rituais maçônicos, deitavam raízes na cultura e nas cerimônias secretas praticadas no antigo Egito. Também estávamos convictos que todas as chamadas escolas de mistérios, de todos os tempos, estavam alicerçadas sobre um mesmo paradigma, e que esse paradigma ensejava uma mesma cosmovisão, apesar dela, por questões culturais e de linguagem, ter assumido diferentes expressões através do tempo.

 

Por outro lado, ao participar de certos rituais maçônicos modernos, incomodava-nos certa impressão de falta de alma e de falta de essência na cerimônia praticada. Por vezes, a sensação era tão forte que dava a impressão de que os celebrantes cumpriam procedimentos como meros autômatos, e que o espírito da celebração, completamente ausente, tinha sido esquecido, em algum recanto do tempo. Na medida em que descobríamos as sutilezas da arquitetura metafísica e dominávamos a concepção cosmológica do antigo Egito, revelando a essencialidade e o alcance daquele olhar poderoso, mais clara se tornava a abismal diferença que permeava uma sessão maçônica moderna, da sua cerimônia ancestral, nos templos sagrados do Egito.

 

Na derivada dessas reflexões, uma pergunta se tornava imperiosa: - como terá sido uma cerimônia egípcia de celebração, no templo de um de seus deuses? Formulada a questão, vi-me em pé, no ocidente de um majestoso templo de pedra, onde estava sendo iniciada a celebração de Ma`at. Eu vestia uma túnica branca de linho, calçava sandálias de couro cru, e tinha na cabeça, um ornamento leve, cuja forma não conseguia ver.

 

Antes de descrever o que aconteceu, convém esclarecer que nosso estudo sobre o Egito nos convenceu que a religião egípcia antiga era monoteísta, que os chamados ne-ter-u, traduzidos no ocidente como sendo deuses egípcios, eram na realidade considerados como forças cósmicas, responsáveis pela criação e pelo funcionamento do mundo e que o próprio universo, era considerado como um oceano de energias que evoluía em fenômenos e formas moldadas pelo poder dos neteru. Não havia, então, essa distinção que hoje fazemos entre o visível e o invisível, entre o material e o espiritual, e, sobretudo, não havia um culto da morte ou uma orientação mórbida da vida, como alguns egiptólogos apressados chegaram a sustentar.

 

 

Ao contrário, a idéia básica era a da ressurreição, a do poder divino de suplantar a morte e ressurgir em outro plano superior, vivo e em plenitude de gozo de uma nova etapa no processo evolutivo. Não se tratava de uma visão grosseira de ressurreição do corpo, mas de uma concepção refinada que exigia regeneração permanente, como testemunham as sementes que lançadas à terra, mostram que a morte da vida, na semente, é apenas aparente, e que a vida sempre ressurge, bela e gloriosa. Hoje, para mim, as pirâmides não são tumbas dedicadas a mortos, mas templos devotados à ressurreição do povo que as construiu. - São monumentos dedicados à vida, porque a evolução somente cessa, para cada um, quando ele estiver apto a se reintegrar ao princípio criador.

 

Nesse contexto conceitual e energético, o microcosmo humano está emerso e radicalmente comprometido com o macrocosmo universal, e também com as demais manifestações da vida, todas igualmente peregrinas da mesma estrada e sujeitas às mesmas vicissitudes do processo de materialização, de individuação e de busca de perfeição.

 

Nesse contexto energético, Ma`at representa o poder responsável pelo equilíbrio cósmico, o poder regente da sinfonia universal, símbolo da verdade, da lei e da justiça. Ma`at é, sobretudo, harmonia cósmica, preceito básico de conduta na vida e critério de julgamento das ações humanas, cujo dever existencial se resume em manter a nuvem de energia que compõe o seu ser, em perfeita sintonia e harmonia com a sinfonia universal promovida por Ma`at.

 

Por isso, quando me vi parado entre as colunas do templo, a primeira coisa que percebi foi a música de fundo que impregnava o recinto, embora não se visse nenhum músico à vista. A música era suave e apenas garantia que todas as esferas de energia do ambiente, vibrassem de modo sincronizado.

 

No oriente, sob um dossel, o Faraó ocupava o trono, tendo ao seu lado a rainha. Ambos ricamente ornados, estavam sentados eretos e imóveis. Ele com o cajado na mão direita e o cetro na esquerda. Ela, com a mão direita pousa-da sobre a perna direita e a mão esquerda na outra, palma para cima, segurando a chave de Isis.

 

Em cada lado do trono, um guerreiro da guarda pessoal. Torso nu, mãos espalmadas sobre as cochas, sentados eretos como os reis, imperturbáveis, olhando fixamente para a frente.

 

Diante do trono, dois ou três degraus abaixo, uma grande área circular configurava um palco, que se estendia por um corredor central, até o ocidente onde eu me encontrava. De ambos os lados, em semicírculos voltados para o palco, meia dúzia de fileiras de bancos curvos, estavam parcialmente tomados, por uma platéia silenciosa.

 

No palco, de frente para o ocidente, nove figuras majestosas e esguias, estavam de pé, geometricamente dispostas e imóveis. Túnicas longas de linho branco, ornamentos no peito, coberturas na cabeça e instrumentos nas mãos. A disposição a partir do trono, era 1, depois 2, depois mais 2 e finalmente uma fileira com 4.

A iluminação forte do templo foi diminuindo paulatinamente, a medida que um facho de luz, vindo do teto, focalizava exclusivamente o Faraó. No final, a figura do rei se destacava luminosa e solitária. O Faraó, de pé, com voz grave e firme, mas serena, proferiu o seu discurso: - Eu sou Ma`at, a harmonia cósmica e o senhor da justiça. Sob minhas ordens, as esferas de energia do céu e da terra giram em sintonia e produzem a sinfonia universal que sustenta e preserva a harmonia dos mundos. Fechem os olhos e deixem que Ma`at os penetre e os harmonize. Não há dor nem doença num corpo harmonizado. Ouçamos todos a música das esferas do nosso próprio organismo e exijamos que a nossa nuvem de energia se constitua em morada de Ma`at, e que, à nossa presença, todos os males se ausentem e todos seres da natureza se sintam em paz e segurança.

 

O discurso do Faraó seguiu por esse diapasão, enaltecendo o papel de Ma`at na condução da família e dos negócios, no trabalho agrícola e na gestão do estado, no relacionamento com os estrangeiros, etc. No final, ressaltou a importância de Ma`at na conquista de felicidade pessoal e na conquista da Chave de Isis, sem a qual, ninguém consegue voltar à fonte. Dito isso, concluiu: - à minha frente, a Grande Enéade: as primeiras nove entidades que surgiram a partir de Nun, o oceano cósmico energético primordial. Eles são os universais objetivos, os neteru, que presidem, cada um com seu poder, o desenrolar do mundo, até que se cumpra totalmente esta oitava.

 

O foco de luz se desloca e passa a iluminar a entidade mais próxima do rei. Esta profere o seu discurso: Eu sou Atum, a consciência primordial, que no princípio dos tempos, emergiu do oceano cósmico de Nun. Eu sou Nun desperto, Num sou eu adormecido. Eu sou a primeira manifestação da consciência e cuspi dois filhos, idênticos a mim: Shu e Tefnut.

 

O foco se divide em dois e passa a destacar as duas entidades da fila seguinte, que proferem o seu discurso, sincronizadamente: Eu sou Shu e Tefnut, sou a diferença primordial, que supera o indiferenciado. Eu sou Shu e Tefnut, eu expando a unidade primordial e abro espaço para a diversidade e para a complexificação. A minha expressão mais elaborada é ser feminino e masculino. Eu e meu complemento, tivemos dois filhos: Geb e Nut.

 

O foco se desloca para as duas entidades da fila seguinte que falam uma de cada vez. Eu sou Geb, a Terra. Eu sou Geb a matéria. Sou terra e matéria neste e em todos os mundos, sou energia coagulada e possibilito o advento do recipiente. Eu, Geb, sou energia densa. Sou a mãe de todas as formas, antes do surgimento da primeira forma. Eu, Geb, sou a terra e eu, Nut, sou o céu. Eu sou Nut a existência não material. Eu sou Nut, o espírito primordial. Eu constituo a essência determinante de todas as formas. Eu sou Nut, a estrutura determinante. Com Geb formo o casal perfeito e dividimos o mundo em céu e terra. O nosso amor gerou quatro filhos: Ausar (que os gregos chamam Osiris), Auset (Isis), Set (Seth) e Nebt-Her (Néftis).

 

Nesse instante, focos de luz iluminam todas as cinco entidades que já se pronunciaram, e uma, da primeira fila, no escuro, esclarece: - estas cinco entidades, nossas ancestrais, configuram a palavra inaugural, o som perfeito, o Verbo, o poder normativo universal. Constituem uma unidade, porque, no proces-so evolutivo, todo cinco completa as partes e estabelece uma nova unidade.

No caminho da complexidade crescente, esta unidade é a primeira manifestação de Ra: o que reúne, o que cria.

 

O foco então se desloca e passa a iluminar as quatro entidades da fila da frente. A entidade da direita é Ausar (Osiris), depois Auset (Isis), depois Set (Seth) e à esquerda, Nebt-Het (Néftis).

 

Quem primeiro toma a palavra é Set: Eu sou Set, a oposição primor-dial. Eu sou Set, a resistência e o fundo de referência que possibilita o advento de toda afirmação. Sem mim seria tudo indiferenciado. Eu sou Set, o fogo abrasador que calcina e faz evaporar as águas do Mediterrâneo, ... que depois o vento leva para as cabeceiras do Nilo. Eu sou Set, o fogo que associado a Nebt-Het, minha irmã e consorte, cria e reina nos desertos que a leste e oeste, protegem o vale do Nilo, numa fortaleza natural. Eu sou Set, que reinava absoluto quando a Terra ainda era toda estéril. Eu sou Set, o poder seco que se opõe à água. Eu sou Set, o poder escuro que se opõe à luz. Eu sou Set o poder estéril que se opõe à vida. Eu prendo na matéria, o espírito que ousa me penetrar, e na matéria, adormeço a vida. Eu sou Set, que recolho e angulo a vida que fracassa no processo evolutivo. Só escapa de mim, só deixo passar, quem portar a chave de Isis.

 

Eu sou Isis, o receptáculo. Eu sou Isis, a Mãe Natureza, que tudo provê e tudo sustenta. Eu sou Isis, a terra fértil do vale, fecundada pelas águas do Nilo. Fecundada por Osiris, meu esposo e irmão. Eu sou Isis, a esposa amorosa que chorou quando Set destruiu seu esposo, e cortando seu corpo em pedaços, os espalhou ao longo do Nilo. Eu sou Isis a esposa dedicada que não desistiu do seu amor, e, recolhendo os pedaços de seu amado, envolveu-os em faixas, perfumou e o tratou com tanto amor esse corpo, que Osiris despertou por uma noite e deixou dentro dela, a semente da vida. Eu sou Isis, a mãe natureza que guarda registro de todos os esforços do espírito, na busca da perfeição. Eu sou Isis, a sabedoria que conhece todos os caminhos, e também o caminho que conduz à fonte. Por isso, eu sou Isis: a guardiã da chave.

 

Eu sou Ausar, que os gregos chamam de Osíris, o princípio masculino. Eu sou Osíris, o poder fecundador e o portador da vida. Eu sou a vida. Eu sou Ausar, o eterno. Eu sou Osíris, a vida eterna. Sou o ontem, conheço o amanhã. Eu sou Ausar, o poder de vida que faz o trigo germinar. Eu sou Ausar, o poder que faz germinar todas as sementes. Eu sou Ausar, o poder que de manhã te desperta do sono e te acende de vida. Na verdade, Set nunca me venceu. Eu por vezes, adormeço em Ra, assim como também Rá, adormece em mim. Mas mesmo quando Set dominava a Terra, eu Osíris, que não tenho medo das trevas, operava em silêncio e organizava as entranhas da energia e preparava o advento da vida. Eu sou Ausar, o guerreiro que vence a morte, o Senhor da Ressurreição.

 

Nesse instante, Osiris se cala e Isis faz um gesto para que eu me aproxime. Enquanto Ausar falava, os focos de luz sobre Nebt-Het e sobre Set foram diminuindo até se apagarem. Quando cheguei diante de Isis, apenas ela, Ausar e eu estávamos iluminados.

 

 

 

Ao chegar diante dela, Isis me fez girar e olhar para o ocidente e eu senti, com absoluta clareza, que as presenças, às minhas costas, constituíam a minha verdadeira família ancestral. Atrás de mim pude sentir a poderosa presença da segunda manifestação de Ra. Nesse instante, das profundezas da minha alma, um vulcão incontrolável de emoções irrompeu, e eu não pude me conter: chorei compulsivamente, como nunca tinha feito na vida. Simplesmente não conseguia segurar. As emoções eram imensas, múltiplas e misturadas. Dois aspectos dessa emoção persistiram indeléveis: de um lado, a gratificação, a alegria e a felicidade provocada pela ostensiva presença desses ancestrais: eram, sem dúvidas, a minha família original. Podia sentir isso. De outro, um vasto, imenso e arrasador sentimento de solidão e de angústia, pelos irmãos de destino, que pela vida afora sofrem sem saber da sua origem, e que, sem a mínima necessidade, se menosprezam, pensando serem apenas animais inteligentes, gerados acidental-mente pela natureza.

 

Essa experiência foi tão arrebatadora que eu fui subtraído do templo e no mesmo instante envolvido nesse turbilhão de sentimentos que tomou conta completamente do meu ser, permitindo-me experimentar, também pela primeira vez, uma unidade e uma inteireza total, sem fronteiras e sem fragmentação. Nenhuma das energias que compõe meu ser ficou de fora desse êxtase. Nesse instante, corpo e alma se fundiram, e eu fui um.

 

Isis, no templo, provavelmente discursava assim: Eu sou Isis, o número dois na ordem da criação. O primeiro par perfeito. Este, é Osíris, meu esposo amado: o número três. O primeiro ímpar perfeito. E este é Hórus, o nosso filho. Hórus: o número cinco, e, como cinco, o constituinte da nova unidade. Hórus é o ar, a criação, a redoma de vida que se estende ao redor do Nilo, da nascente à foz. Hórus é também Ausar ressuscitado e sendo Ausar ressuscitado, é também o espírito originalmente fragmentado, que peregrina em busca da fonte. Hórus é o filho pródigo desafiado e desejoso de voltar à casa paterna. Para chegar lá, terá de conquistar panta: o todo. Que Ma`at o conduza pelo caminho certo.

 

Esta, conclui Isis, dirigindo-se à platéia, é a família dos ne-ter-u.

 

É possível que para encerramento da cerimônia, o Faraó convocasse todos os presente para entoarem em conjunto um mantra com a palavra ne-ter-u e, depois de conclamar a todos para que, nas suas atividades cotidianas, fossem mensageiros e testemunho vivo do poder harmônico de Ma`at,  espalhando essa harmonia pela terra, os convidasse para passar ao salão ao lado, e desfrutar de um banquete regado com as dádivas de Isis, ouvir música e confraternizar.

 

 

Brasília, 01/09/2003

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