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Apelo à arte

Rubi Rodrigues - 11/03/2021

Apelo à arte

Já fui bebê chorão, moleque folgadão, adolescente romântico, jovem revolucionário, operário dedicado, pai de família e, agora, sou apenas vovô coruja. Nesse processo, o humor dançou aos extremos, e a razão, inicialmente claudicante, foi aprumando-se, pouco a pouco, até firmar-se, quando me constatei adulto. O sentimento de maioridade chegou quando me convenci de que tudo de bom ou de mau que me acontecia resultava ser, única e exclusivamente, de minha responsabilidade. A sabedoria popular sintetiza essa lição, sentenciando que cada um colhe o que planta – uma irretocável expressão da justiça da natureza. Deixar de culpar os outros pelos meus problemas foi ato de libertação espiritual inestimável – para entender, só mesmo vivenciando as suas implicações, a começar pela capacidade de lançar olhar menos exigente e mais amoroso sobre os outros. A grande transformação adveio, porém, da consciência de que a responsabilidade pessoal pelos meus atos exigia capacidade de interpretar, corretamente, o mundo e as circunstâncias, de sorte a transitar pela vida, sem confrontar a natureza e sem criar problemas desnecessários. Na busca de entendimento, visitei pensadores modernos, a religiosidade medieval, encantei-me com a Renascença, estudei neoplatônicos, comunguei com gregos clássicos e, finalmente, fui beber na fonte originária da filosofia, nos templos imperiais do Egito. Ali, as pistas terrenas da sabedoria perdem-se nas brumas do tempo, subsistindo apenas a lenda de que a primeira chispa de lucidez teria sido entregue, furtivamente, aos homens, por uma bela e misteriosa deusa.

Sendo inútil seguir adiante, voltei, satisfeito! Trazendo na bagagem a cosmovisão de um universo evolutivo, matematicamente organizado, e uma teoria do conhecimento que concede acesso racional a essa organização. Nada mal para um menino que, aos onze anos, de cesto nos braços, vendia bananas nas portas de Santo Ângelo. Conto esse detalhe apenas para mostrar aos jovens que não se trata de dificuldades, mas, sim, de determinação.

Hoje, quando uma pandemia viral, real ou imaginária, expõe as vísceras de uma civilização pós-moderna, anacrônica e moribunda e o povo brasileiro acorda tentando firmar-se como nação, não há como declinar da responsabilidade de contribuir para iluminar o pedaço. Nossos esforços metodológicos em filosofia têm-se revelado inúteis, talvez porque conhecimento também demanda tempo de germinação. De outro lado, o humor azedo próprio das crises, aliado à tagarelice dos homens na rede, tem dificultado aos ouvidos ouvir. Resta fazer o quê?

Resta prestar atenção à natureza que costuma mandar sinais sobre o curso natural das coisas. Em dezembro de 2020, antes das férias, tive de procurar um livro em armário pouco utilizado e me deparei com grande quantidade de CDs guardados. Nesse momento, percebi que ouvia muito música quando mais jovem e, com o tempo, acabei deixando a música de lado e concentrando-me nos livros. Por que aconteceu isso? Com essa questão na cabeça, fui com a família à praia, na Bahia, e não é possível estar na Bahia sem ser tocado pela rica cultura afro-brasileira que impregna o ar. O clima cultural da Bahia convida, naturalmente, a se pensar na vida. Certa noite, depois de a casa se aquietar, sentado na varanda, apreciando o sossego, uma brisa mansa e um escocês arrepiado no gelo – com a cumplicidade silenciosa de um belo cajueiro que dominava o pátio –, aquela pergunta retornou: por que, no tempo, afastei-me da música?

Nessas horas serenas, a alma costuma ser sincera: o que me veio à mente foi uma certa dança da garrafa, que percebi logo como sendo o símbolo adequado das razões que me afastaram. Meu encanto com a música da Bahia estava ancorado nas canções de Dorival Caymmi, cujos versos e cuja melodia tocavam as raízes primitivas do meu modo brasileiro de ser e, por isso, tinham a capacidade de me transportar para a confluência do profano com o sagrado, onde se revela aos homens o privilégio de ser humano. Não sou versado em arte e não acompanho os passos da música brasileira, mas basta um mínimo de sensibilidade para perceber que algo de muito sério aconteceu com ela e, tendo em conta certa instalação de homem nu para crianças, da qual tive notícias, algo de muito grave parece ter ocorrido com toda a arte brasileira. O que emergiu na minha consciência falava de mau gosto, de decadência, de mediocridade, de pobreza de espírito. Na contrapartida, veio o sentido clássico grego de arte, fascinado pela medida certa, pelo corpo esbelto, de deuses e de homens, ao mesmo tempo, enaltecendo o espírito humano e desafiando-o a superar a condição humana e a igualar-se aos deuses. Uma arte que indicava caminhos à humanidade. Uma arte que enaltecia o espírito e que, na Grécia Clássica, plantou as sementes da Civilização Ocidental e, no medievo, gerou a Renascença. Arte maiúscula: arte como farol da humanidade.

Em seguida, lembrei-me da Semana de Arte Moderna de 1922, na qual a arte brasileira foi desafiada a promover a formação de identidade nacional, inaugurando movimento que, em sua primeira fase modernista, priorizou temas pautados no nacionalismo e, assim, na cultura e na identidade do Brasil. Embora não tenha conhecimento para avaliar os resultados desse movimento, consigo perceber, claramente, o efeito revelador do espírito brasileiro, ao contemplar obras, como as de Dorival Caymmi, de Villa-Lobos e de Tom Jobim – obras nas quais a articulação de delicadeza melódica, a genialidade poética e a simplicidade própria de um povo em comunhão com a natureza conseguem expressar o padrão vibratório identitário de uma nação. Recordo-me de ter ido à Europa e constatado que, na época, ambientes requintados eram ornamentados com música de fundo da Bossa Nova e da MPB. Assim, também me lembrei de Tom Jobim, lotando grandes salas europeias, com pessoas sensíveis e ávidas por comungar o espírito brasileiro.

É claro que ainda se encontram, vez por outra, lampejos dessa luminosidade, em composições, como as de Almir Sater, Oswaldo Montenegro, Adriana Calcanhotto, e em preciosidades outras que, às vezes, ouço, ao dirigir, sem conhecer autores. Apesar disso, parece claro que o encanto se quebrou e que aquela liderança se perdeu. O que terá havido com as nossas Escolas de Belas Artes? Será que ainda são designadas assim?

Certamente, ocorreu flexibilização do considerado obra de arte, o que, francamente, resultou em abandono do seu papel histórico de orientar e de promover o aperfeiçoamento do espírito humano. As razões desse desvio de luminosidade são conhecidas: a Pós-Modernidade e a sua lógica dialética provocaram efeitos semelhantes em muitas atividades humanas e não apenas nas artes. A Pós-Modernidade surgiu como crítica da Modernidade e, para tanto, valeu-se de lógica que patrocina modo de pensar mais abrangente do que aquele que possibilitou o advento das máquinas e a Modernidade. No plano lógico – das leis que regulam os modos de pensar –, a Modernidade, capitalizando as potencialidades da lógica clássica e o seu modo sistêmico de pensar, ampliou o nosso domínio sobre a matéria e produziu a Revolução Industrial, com as suas maravilhosas máquinas. A Pós-Modernidade, por seu turno, capitalizando potencialidades próprias da lógica dialética e do seu modo histórico de pensar, conseguiu visualizar não apenas as funcionalidades da matéria e das máquinas, mas também o seu efeito histórico sobre as vidas humanas. Com esse olhar mais amplo, foi capaz de apontar os limites do pensamento sistêmico bem como as suas deficiências na contemplação da complexidade da vida.

A passagem de Modernidade para Pós-Modernidade e de lógica sistêmica para lógica dialética, em termos de aperfeiçoamento do discernimento, representou, certamente, evolução, mas, em termos civilizatórios, inaugurou uma fase histórica de exacerbação de conflitos e de amplificação de confrontos entre dois diferentes modos de contemplar a vida. Apesar dos riscos envolvidos em toda simplificação, podemos designar esses dois modos como modo conservador e modo progressista de contemplar a vida – o primeiro, expressando a valorização da lógica clássica e do modo sistêmico de pensar, e o segundo, valorizando a lógica dialética e o modo histórico de pensar. O descaso da educação para com os estudos de lógica, como leis que regulam o ato de pensar, tem ensejado o exercício monológico desses modos de pensar e a polarização política desses dois, na forma de ideologias de direita e de ideologias de esquerda. O erro inferencial básico desse ponto consiste em pensar que lógica superior substitui lógica mais simples, enquanto que, na realidade, apenas amplia a percepção da realidade. As lógicas indicam estágios cumulativos mais complexos de organização da realidade. Esta apenas manifesta-se efetivamente existente, na forma de totalidade complexa feita de partes. Nessa totalidade, materialidade e história configuram instâncias ontológicas constituintes, necessárias, mas nenhuma delas é suficiente para configurar a realidade. São apenas partes da realidade, de sorte que a disputa entre conservadores e progressistas equivale a uma discussão entre fígado e estômago, tentando determinar qual dos dois deve ser coroado rei do organismo, por ser o mais importante na preservação da vida.

O resultado trágico dessa insuficiência lógica refere-se às posturas monológicas que absolutizam um ou outro modo de pensar e se arrogam no direito de querer impor a lógica da sua parte a um todo que transcende a soma das partes. Estamos vivenciando hoje o estágio pós-moderno da civilização humana, presidido pelo exercício monológico da lógica dialética. Essa lógica resulta ser, estruturalmente, própria para revelar os conflitos dos homens com as suas circunstâncias à sombra do futuro inescapável de todo ser vivente nas garras da entropia. Esse modo monológico de pensar tem ensejado concepções políticas socialistas utópicas, nas quais a igualdade humana seria, plenamente, alcançada. Dado que, historicamente, a organização social evoluiu, adotando soluções hierárquicas, o pensamento socialista se insurge contra todas as diferenças, havendo tentativa de destruir as estruturas sociais conservadoras, tais como a família, a religião, os costumes e tudo o mais que, segundo essa lógica, impede a almejada igualdade.

Quando esse modo de pensar se assenhora das escolas de arte, consequentemente, as criações artísticas passam a expressar esses ideais igualitários e se associam no processo de destruição, que é próprio da lógica que normatiza esse modo de pensar. A lógica dialética não serve para construir. Construir está fora do seu escopo e das suas possibilidades, e, quando, apesar disso, ela tenta fazê-lo, precisa afastar-se da realidade e criar um mundo imaginário que contrasta com a natureza, uma vez que a natureza edifica complexidade, capitalizando, justamente, diferenças, que ela mesmo engendra. Se elétron e próton não fossem diferentes e até antagônicos, seria impossível o advento de átomos. Não se trata, portanto, de defeito ou de deficiência da lógica, mas do seu uso equivocado.

Igualmente contaminado pelo espírito do tempo da Pós-Modernidade, o setor das artes também acabou afetado no seu propósito de orientar o espírito humano para o alto e para a perfeição e acabou sendo usado, politicamente, para propósitos ideológicos outros, com boa parte das pessoas, possivelmente, sem dar-se conta disso.

Estando na Bahia, é impossível não lembrar de uma das últimas investidas ideológicas da Pós-Modernidade, tentando acusar de racistas brasileiros miscigenados e multiculturais. Os discursos falam de discriminação e de escravidão vivida por ancestrais longínquos, talvez pretendendo afetar, psicologicamente, o homem atual, forçando-o a sentir-se culpado pelas ações de outros praticadas no passado. Ora, a mãe África foi o berço da civilização e foi a partir dela que o mundo foi povoado. Há milhares de anos, o homem de Cro-Magnon saiu da África para povoar a Europa e a Ásia, da mesma forma que, no final da Idade Média, saiu para povoar a América, cumprindo, virtualmente, o seu destino. É verdade que, para a América, ele veio forçado pela escravidão, mas é difícil acreditar que o homem de Cro-Magnon tenha saído do clima quente da pátria-mãe e ido enfrentar o frio da Ásia e da Europa, por livre e espontânea vontade. O mais provável é que a natureza, de um modo ou de outro, ensejou circunstâncias que forçaram a migração. Isso também se deu depois do descobrimento da América, quando um novo território exigia ocupação. Eu, se fosse descendente africano, teria orgulho de pertencer ao ramo que povoou a Terra, talvez, por destino ou por determinação dos deuses. Abandonar a terra-mãe é sempre doloroso e a quem coube atravessar o Atlântico e sobreviver cabe, também, honrar como ser humano forte que enaltece a espécie. Não vieram apenas braços fortes, veio junto cultura densa, acompanhada de divindades ancestrais sustentadoras da vida e de perspectivas humanas próximas das leis da natureza. Houve, certamente, sofrimento e trabalho, mas também capacidade, para entender que sobreviver é sempre trabalhoso, e sensibilidade, para perceber que a terra hospedeira era de boa natureza e de clima agradável, o contato com o homem branco ensejava o domínio de novas técnicas de cultivo e de trabalho da terra, novos cultivares, novos artefatos, novos hábitos e costumes, novos tratos do corpo, nova culinária, novo modo de conduzir a educação das crianças. Veio-me à mente a figura folclórica do Pai Tomás, sentado na soleira da senzala, olhando a noite, fumando cachimbo e, com cabelos brancos, sendo capaz de perceber que, para além da escravidão, o processo de miscigenação, lenta e gradualmente, rompia barreiras sociais e, potencialmente, moldava, com sangue africano, o futuro de um império tropical nascente.

Não creio que a relação entre escravo e patrão tenha sido apenas conflituosa. Se o empresário moderno sabe o quanto depende de seus empregados, o fazendeiro do Brasil colônia também conhecia o valor da confiança nos negócios. Houve festas, houve cantorias, houve amores, alguns legais e outros furtivos – lembrei-me da canção Romance na Tafona, do cancioneiro gaúcho – e, com toda a certeza, também houve destino comum, compartilhamento de aflições, compaixão, cumplicidade, vitórias e derrotas igualmente sentidas. No final das contas, hoje, já não há família brasileira na qual não corra alguma porção de sangue africano. Naturalmente, também corre sangue índio, português, espanhol, italiano, alemão, russo, eurasiano, arábico, eslavo, libanês e tantos outros. Apesar dessa caleidoscópica mistura, a importância do gene africano é notória, de sorte que lhe cabe, perfeitamente, orgulhar-se da conquista. Eu mesmo, em razão da eficiência do meu anjo da guarda, penso ser filho de Oxum e ter o corpo fechado, sem ter a menor ideia de como isso me chegou à cabeça. Chegaram imigrantes forçados pelas circunstâncias e acabaram edificando uma nação ímpar e um país maravilhoso.

Escravos? Ora, escravidão não foi prerrogativa africana, todos os povos foram, em algum momento, escravizados. Platão foi vendido como escravo. O europeu que veio para o Brasil, a começar pelos portugueses, vieram forçados pelas circunstâncias. O que eu vejo são estirpes que superaram dificuldades, enfrentaram condições iniciais inóspitas e, amparadas em suas divindades, em suas crenças e em sua cultura, dominaram condições adversas e geraram um magnífico lugar para se viver. Quem teve medo de migrar e ficou na terra natal terá alcançado o mesmo sucesso? E, aí, a arte, que deveria cantar esses feitos, enaltecer os deuses e as culturas ancestrais dos imigrantes e louvar o espírito brasileiro resultante, esquece-se do seu papel de farol da humanidade e deixa toda uma nação heroica à deriva, só vislumbra erros e produz uma população envergonhada do sucesso alcançado. Desculpem, mas está errado.

E não é por falta de gênio e de criatividade. Villa-Lobos e Elomar estão aí para provar que é possível expressar a brasilidade com o mesmo requinte e distinção de consagradas obras clássicas internacionais. Dorival Caymmi, Villa-Lobos, Tom Jobim, Di Cavalcante e outros estão aí para provar que o espírito brasileiro tem identidade própria e pode ser expresso de forma delicada, requintada e singular. Por que a arte deixa as divindades africanas que sustentaram essa epopeia escondidas em terreiros restritos quando mereciam ser louvadas em espetáculos grandiosos capazes de encantar plateias exigentes? Da mesma forma, para além da Bahia, observa-se a rica cultura, própria dos demais estados brasileiros, constata-se que também essas culturas possuem densidade e merecem ser expressas em grandiosos espetáculos singulares, uma vez que a história local e a cultura ancestral contemplam heróis, guerreiros e feitos capazes de enaltecer e orgulhar a estirpe. O acervo cultural presente no Brasil é tão rico que o turismo brasileiro poderia combinar magníficos espetáculos culturais requintados à beleza natural estonteante do território e constituir-se em sonho de consumo turístico do mundo.

Para tanto, a arte brasileira precisaria libertar-se do viés ideológico e voltar a assumir o seu papel orientador e edificante dos espíritos, entendendo que elevação espiritual implica superação de instintos próprios da animalidade, o que, em música, traduz-se, penso, como trânsito do ritmo para a melodia e a harmonia. Temos mais a oferecer ao mundo do que o rebolado de quadris.

Tenho concentrado meus esforços no plano da racionalidade, da lógica e da filosofia e tenho encontrado dificuldades de comunicação. Talvez a arte constitua um caminho mais promissor, embora, aos setenta e sete, eu não tenha mais energia para uma guinada tão grande na minha formação. Tenho consciência de, nestes escritos, ter posto o pé fora do meu pedaço e peço ao leitor e, particularmente, aos artistas que sejam complacentes com minha pouca erudição na área. Relevantes são a denúncia da falta que a arte faz ao povo brasileiro e o apelo que faço em nome de um Brasil possível que apenas nós, filósofos e artistas, podemos construir, caso sejamos capazes de superar esse torpor ideológico importado e abrir olhos brasileiros.

Brasília, março de 2021.

Rubi Rodrigues

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