Se Deus quiser
Rubi Rodrigues - 22/03/2022
Se Deus Quiser
Acabo de assistir a uma série islâmica, ambientada na região da Anatólia, antes da queda de Constantinopla, que conta a saga do povo turco para criar e para preservar o seu Estado. O que me sensibilizou, em particular, foi a fé em Deus do povo turco e a constância com que a expressão “se Alá permitir” aparece no cotidiano das pessoas, em época na qual a morte era uma possibilidade cotidiana e, virtualmente, a solução preferida dos conflitos. A esperança era sempre comungada com essa expressão, denotando pacífica submissão ao destino que Alá reservara para cada um. Essa confiança em Alá não era, porém, gratuita, ela resultava de rígida obediência aos preceitos de dignidade e de justiça, que o Profeta cuidara de registrar. Se estavam a serviço do Criador, nada mais coerente e justo do que contar com a sua proteção em seus empreendimentos.
No mundo cristão, a expressão correspondente a “se Alá permitir” é “se Deus quiser”. No Ocidente, também usamos esta expressão, com bastante frequência, ao menos em determinadas situações, sendo provável que expressões correspondentes sejam encontradas em todas as culturas.
Diante de “se Deus quiser”, um céptico ou um agnóstico debochará, imaginando estar diante de um religioso ingênuo que supõe existir no céu um anjo do protocolo, registrando pedidos, ou, então, que Deus deixará os seus afazeres para atendê-lo. Não penso que a coisa seja assim tão simples nem mesmo que constitua mera expressão religiosa. Vejamos, à vista disso, essa questão mais detidamente.
Nós, modernos, dominamos uma ciência e por ela balizamos nossos projetos. Se plantamos uma muda de árvore, na esperança de, em certo tempo, desfrutarmos de sua sombra ou de seus frutos, tomamos todas as precauções recomendadas pela botânica: escolhemos um lugar certo, cavamos e afofamos a terra, adubamos adequadamente, regamos, enfim, fazemos tudo para que a planta cresça conforme o previsto. Não há, porém, certeza de que chegaremos a desfrutar da sombra ou dos frutos da árvore. Muitas coisas podem acontecer no percurso, desde a planta não vingar, não se adaptar ao local escolhido, ser atacada por doença ou por predadores, ocorrer algum acidente e até mesmo não estarmos vivos no momento do desfrute. Plantamos, tomamos os cuidados conhecidos e, no final, suspiramos: se Deus quiser, colheremos frutos.
Essa consciência de que, para além do domínio da nossa ciência, o imponderável precisa, também, cooperar, para o sucesso de nossos empreendimentos – o que está expresso na frase em questão – decorre mais da experiência humana no exercício da vida do que constitui demonstração de alguma devoção religiosa. A frase representa, sobretudo, sabedoria e humildade diante de um comportamento da natureza que se situa além do nosso domínio.
Essa dependência do imponderável manifesta-se no próprio âmbito do espaço-tempo que demarca a ciência atual. Estamos, nós e os nossos projetos, situados na superfície do planeta Terra. Este planeta possui núcleo ígneo, crosta sólida, oceanos líquidos a além disso, atmosfera gasosa, elementos que, preservando certo equilíbrio, geram condições favoráveis à nossa forma de vida. Evidentemente, existem leis planetárias situadas fora do nosso domínio, regendo esse equilíbrio, do qual nós e os nossos projetos dependem. Além disso, a Terra faz parte do Sistema Solar, no qual uma estrela se desloca pelo espaço em vertiginosa carreira, carregando atrás de si oito planetas rodopiando em volta, naturalmente obedecendo a leis que garantem ao Sistema determinada estabilidade. Leis essas das quais o desempenho da Terra também depende. Finalmente, o próprio Sistema Solar situa-se em certo braço de uma galáxia que também rodopia vertiginosamente e que, supostamente, a cada vinte e quatro mil anos, completa uma rotação inteira sobre o seu eixo, segundo leis próprias que também lhe proporcionam determinada estabilidade. Diante desse quadro de dependências, não se admira que o homem atento implemente os seus projetos, ciente de que eles darão certo “se Deus quiser”, e que, portanto, essa expressão constitui, sobretudo, manifestação de sabedoria popular consolidada com o tempo.
A sabedoria popular tem uma outra expressão que se refere à estabilidade ou à regularidade, manifestas nas leis que regem esse imponderável. Muitas pessoas já devem ter presenciado ocorrências diante das quais lhes veio à mente a seguinte sentença: estava na cara que isso iria acontecer ou que o desfecho seria esse. Antigamente, falava-se: estava escrito nas estrelas que tal coisa aconteceria. Essa expressão da sabedoria popular, levada ao plano da razão formal, acusa a percepção de que esse imponderável, situado além do nosso alcance, manifesta-se de modo regular, o que implica a presença de leis dotadas de estabilidade e de constância, presidindo o seu desempenho. A percepção de que o desfecho seria esse pode ter sido tão leve que, na ocasião, não lhe demos crédito ou pode ter sido tão forte que acabamos registrando a previsão. De qualquer forma, essa intuição se revelou justificada, tanto assim que o desfecho previsto se deu. Isso significa que, por vezes, a nossa intuição consegue ler o que está escrito nas estrelas e que os infortúnios acontecem, porque não prestamos atenção, porque estávamos distraídos, porque não acreditamos na intuição como um modo válido de pensar ou, ainda, por não termos sido capazes de perceber. Ora, se, por vezes, conseguimos ler o que está escrito nas estrelas, o que podemos fazer para ampliar a nossa sensibilidade e a nossa capacidade de perceber tais coisas?
Uma medida, certamente, seria ampliar o nosso conhecimento e o nosso domínio do mecanismo operacional da intuição. Trata-se de um modo de pensar determinado e, como tal, opera de certa maneira, segundo uma lógica própria que lhe imprime possibilidades e limites. O conhecimento desse mecanismo pode nos convencer tratar-se de um modo válido e útil de pensar e, assim, ampliar o nosso respeito, a nossa consideração e a nossa atenção sobre as suas manifestações. Outra medida possível, virtualmente mais poderosa, seria ampliar o foco da nossa ciência, incorporando elementos constitutivos dessa realidade superior que, embora nos condicione, costumamos relegar simplesmente a um plano do imponderável e nos limitamos a torcer para que tudo dê certo, invocando a proteção dos deuses. O meio de fazer isso consiste em compreender o fenômeno da existência e os modos de ser que configuram a existência neste universo. Isso porque existir representa o fato inaugural/básico de todos os fenômenos presentes no mundo, constituindo elemento comum tanto aos nossos projetos quanto ao planeta Terra, ao Sistema Solar, à galáxia e ao próprio universo. Caso compreendamos as condições segundo as quais a existência efetivamente se dá, com certeza, vamos ter acesso às condições estruturantes dessas instâncias imponderáveis e seremos capazes de encaminhar os nossos projetos sintonizados com elas e, desse modo, ampliar as nossas possibilidades de sucesso.
O homem moderno, formado à luz de uma ciência focada na matéria, encontra dificuldades de livrar-se do turbilhão de ocorrências que configuram o cotidiano da vida no espaço e no tempo e, geralmente, não encontra tempo para perguntar-se a respeito das leis universais que respondem pela ordem universal e pelo comportamento regular da natureza. Ele desfruta de um organismo altamente complexo e milagrosamente funcional, sem tempo de maravilhar-se com a ordem e com a inteligência que produz essa organização, embora ela esteja ostensivamente manifesta em tudo o que existe. Ele enfrenta, é verdade, dificuldades de uso adequado dos seus recursos inferenciais, e a confusão pós-moderna não contribui para facilitar as coisas. Apesar disso e, virtualmente, em razão disso, impõe-se resgatar a questão básica da existência como fato inaugural do universo, para tentar, a partir dela, viabilizar interpretações do mundo mais consentâneas com esse comportamento regular da natureza, na expectativa de conferir, também, ao nosso exercício mental ao menos parcela dessa magnífica ordem que determina tudo o que existe.
A ciência que trata da existência e do ser dos fenômenos denomina-se metafísica, e o filósofo grego Platão, segundo certa leitura de sua obra, especificou, em termos próprios da cultura da época, a estrutura ontológica edificadora da existência. Organizou racional e matematicamente o percurso que separa a mera potência de ser, de existência factual, em ato. Naturalmente, os textos antigos oferecem consideráveis dificuldades de interpretação, razão pela qual, após realizar a tradução da concepção platônica da existência para termos modernos mais acessíveis, estamos criando um centro de estudos focado no modo platônico de pensar, visando a disponibilizar esse saber a todos os interessados. Esse centro de estudos inicialmente será um site virtual, e a instituição operará sob o título de Academia Platônica de Brasília. Esperamos colocar esse site no ar, ainda neste ano de 2022. Convém ter em mente, porém, que apenas conseguiremos fazê-lo “se Deus quiser” ou “se Alá permitir”.
Brasília, março/2022.