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Cap. 2 – O conceito de Paradigma

Rodrigues, Rubi - 01/08/2011

CAPÍTULO 2 – O CONCEITO DE PARADIGMA

Justificativa do conceito de paradigma, como fundamento de um padrão civilizatório.

Objetivo: dar credibilidade ao conceito de paradigma civilizatório.

O conceito de paradigma surge no âmbito de preocupações que, atualmente, são contempladas pela filosofia da ciência, muito embora Thomas S. Kuhn, seu principal mentor, um doutorando em Física Teórica de Harvard, em 1962, tenha proposto esse conceito no âmbito de estudos de história da ciência. Kuhn tinha em mente compreender como se dá a evolução científica e, para isso, desenvolveu levantamento dos eventos marcantes da história da ciência, tomando o cuidado de identificar tanto as alterações conceituais envolvidas como as circunstâncias que precederam e emolduraram cada caso.

O levantamento dos casos concretos revelou que o processo evolutivo da ciência comporta ou pode ser reduzido a apenas dois momentos distintos e bem caracterizados: um momento de estabilidade – designado pelo autor de ciência normal – e um momento de crise – designado de revolução científica. O momento revolucionário é caracterizado pela emergência de novidades subjetivas que alteram pressupostos tradicionalmente utilizados no labor científico, ensejando sempre ruptura com a tradição, em termos de enfoque, de objeto, de método ou de outro aspecto normativo que cumpra papel relevante na condução ou no direcionamento dos trabalhos. Tratando-se de pressupostos da atividade científica, essas novidades apenas são objeto de preocupação dos cientistas durante a fase revolucionária, isto é, enquanto a nova tese ainda procura se estabelecer. Depois de estabelecida e incorporada ao labor científico, apesar de continuar exercendo crucial papel normativo, a novidade desaparece do universo de preocupações dos cientistas e também dos discursos científicos, justamente em razão do caráter subliminar próprio dos pressupostos.

Ora, a palavra paradigma resulta ser sinônima da palavra modelo e, assim, contempla e privilegia tanto o sentido normativo como o sentido de pressuposto; daí a sua pertinência e adequação para indicar as novidades científicas percebidas por Kuhn. Com ela, o seu modelo organizativo da história, distinguindo dois momentos que se sucedem, ganha uma expressão econômica e elegante: a fase revolucionária contempla o momento de crise provocado pelo advento de um novo paradigma científico, e a fase normal representa o momento dedicado à exploração das potencialidades do novo paradigma. Com o conceito de paradigma, o modelo histórico de Kuhn consolida-se como convincente explicação do processo evolutivo da ciência e lhe permite concluir que o padrão usual de desenvolvimento da ciência amadurecida compreende a transição sucessiva de um paradigma para outro, por meio de revoluções científicas.

Apesar do destaque conferido à sucessão de paradigmas para a evolução da ciência, Kuhn não descuida de observar que a fase da ciência normal, na qual os cientistas inevitavelmente empregam a maior parte do seu tempo, é também a mais produtiva em termos de acumulação de resultados científicos objetivos, não apenas em razão do trabalho ser orientado por um paradigma, mas também em razão de envolver o maior número ou a grande maioria dos cientistas; ou seja, muito embora a revolução seja indispensável à evolução, o momento revolucionário constitui exceção.

A análise procedida por Kuhn afigura-se adequada e suficiente para justificar o uso do conceito de paradigma tanto na descrição da evolução experimentada pela ciência como na compreensão do processo de trabalho em ciência. Apesar disso, essa análise não realiza especificação completa e criteriosa condizente com as potencialidades significativas do conceito que faça jus ao seu potencial como ferramenta útil em outras esferas do conhecimento. Kuhn é um homem de ciências da natureza, que se desvia do leito natural da sua profissão para realizar um trabalho historiográfico. Em razão disso, carrega consigo procedimentos e exigências lógicas próprios de uma ciência experimental objetiva e procura aplicá-los e preservá-los na consideração de fatos históricos que têm caráter subjetivo. Esse deslocamento enseja que a análise empreendida se mantenha em uma faixa de considerações ou em um nível de detalhamento que são próprios de uma ciência experimental tencionada pela bancada de testes, pela objetividade e pela aplicação prática. Com isso, captura apenas a parcela do conceito correspondente, deixando de lado aquelas nuances ou aqueles significados que invocam saberes situados na fronteira da atual demarcação científica, na qual a bancada de testes já não impera absoluta ou a certeza já não é tão evidente ou, ainda, a lógica das coisas pode ser outra.

Como exemplo elucidativo dessa faixa de considerações, podemos tomar os conceitos de paradigma expressos por Kuhn em dois momentos da obra. No prefácio de 1962 (KUNH, 1997, p. 13), ele define paradigma como sendo “as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”. No posfácio de 1969, ele pronuncia-se nos seguintes termos:

Atualmente eu consideraria muitos dos atributos de uma ciência desenvolvida (que acima associei à obtenção de um paradigma) como consequência da aquisição de um tipo de paradigma que identifica os quebra-cabeças desafiadores, proporciona pistas para a sua solução e garante o sucesso do praticante realmente inteligente. (KUNH, 1997, p. 223).

O segundo texto, escrito sete anos depois do primeiro, testemunha com a palavra “tipo” a compreensão de que o termo evidencia abrangência mais ampla do que a inicialmente adotada e a expressão “proporciona pistas para a sua solução”, expressando valorização do caráter normativo próprio do conceito. Apesar disso, ambas as citações limitam o conceito à sua dimensão instrumental suficiente para indicar o papel que lhe é reservado nas ciências da natureza e na história da ciência.

Isso não significa que Kuhn não tenha percebido que o conceito tinha alcance maior, significa apenas que o seu projeto dispensava avançar por essas searas. Dado que a maioria dos paradigmas científicos citados por ele apresenta foco limitado, isto é, aplica-se apenas a certos setores da natureza, Kuhn menciona, textualmente, que o paradigma vai se somar às crenças do indivíduo: “crenças essas de composição e origem imponderáveis, que, em última instância e em conjunto, presidem a sua postura diante do mundo”. Essa citação, por si só, já indica que Kuhn aceitaria que o conceito de paradigma, no mínimo, abrange compromissos, implicações e significados imbricados na Psicologia, na Teoria do Conhecimento, na Filosofia, na Lógica, na Linguagem e na Sociologia, para mencionar as mais evidentes. Visto que navegar nessas áreas do saber demanda conhecimentos especializados, compreendemos que Kuhn tenha declinado de avançar por elas nesse trabalho que dispensava isso.

Por essa razão, também não encontramos, no texto, uma análise ontológica do conceito que pudesse revelar ordenadamente todos os seus componentes nem mesmo uma definição que seja mais abrangente. No sentido de melhor especificação do conceito, encontramos apenas uma passagem francamente construída com esse propósito. Na página 30, Kuhn menciona “a Física de Aristóteles, o Almagesto de Ptolomeu, os Principia e a Óptica de Newton, a Eletricidade de Franklin, a Química de Lavoisier e a Geologia de Leyell” como “trabalhos que serviram, por algum tempo, para definir implicitamente os problemas e métodos legítimos de um campo de pesquisa para as gerações posteriores de praticantes da ciência”, isto é, que, por algum tempo, desempenharam o papel de paradigma. Ao buscar as razões pelas quais esses trabalhos puderam cumprir tal papel, conclui que isso se deveu ao fato de todos eles compartilharem duas características essenciais: “foram suficientemente sem precedentes para atrair um grupo duradouro de partidários, afastando-os de outras formas de atividade científica” e “eram suficientemente abertas para deixar toda a espécie de problemas para serem resolvidos pelo grupo redefinido de praticantes da ciência”.

Embora essas duas características sejam obviamente insuficientes para especificar apropriadamente o conceito e embora, também, obviamente a sua especificação precisa não tenha constituído preocupação do autor, em muitas outras passagens, encontramos menções a outros elementos ou atributos que uma análise ontológica revela serem igualmente constitutivos do conceito. Na página 45, por exemplo, a sentença “Ao concentrar a atenção numa faixa de problemas relativamente esotéricos, o paradigma força os cientistas a investigar alguma parcela da natureza com uma profundidade e de uma maneira tão detalhada que de outro modo seria inimagináveis”, em primeira instância, acusa tanto a presença de um objeto, um foco ou um âmbito bem iluminado da natureza quanto a presença de certo poder hipnótico que monopoliza a atenção. Em segunda instância, acusa, também, a pretensão de objetividade (esotérica) de uma ciência que pretende desvendar as leis que regem o funcionamento da natureza e, ainda, a presença de um limite além do qual o foco e, portanto, também o olhar não alcançam. O detalhe do limite de alcance do paradigma explica por que a comunidade de cientistas deixa de lado problemas sociais relevantes e, por vezes, urgentes: simplesmente porque não são contemplados pelo paradigma vigente e, assim, não são considerados problemas científicos.

Da mesma forma, na página 50, a declaração “De fato: a relação entre paradigma qualitativo e lei quantitativa é tão geral e tão estreita que, desde Galileu, essas leis com frequência têm sido corretamente adivinhadas com o auxílio de um paradigma, anos antes que um aparelho possa ser projetado para sua determinação experimental”, denuncia que os elementos componentes do paradigma precisam estar harmonicamente articulados para que tais deduções sejam possíveis e que, portanto, a articulação harmônica dos elementos destacados pelo paradigma constitui outra propriedade geral dos paradigmas.

As menções indiretas aos componentes ontológicos podem ser garimpadas em citações presentes ao longo do texto. Na página 30, a frase “O estudo dos paradigmas, muitos dos quais bem mais especializados do que os indicados acima, é o que prepara basicamente o estudante para ser membro da comunidade científica determinada na qual atuará mais tarde” contempla tanto a referência ao caráter maleável da amplitude do foco ou da amplitude da natureza que os paradigmas focalizam quanto ao caráter de pressuposto que precisa ser incorporado à bagagem de saberes do aluno, para que ele se habilite a exercer tal ciência ou se habilite a participar de tal comunidade científica. O primeiro aspecto – o da maleabilidade do foco – diz-nos da dificuldade de caracterizar e de bem definir o conceito e, até mesmo, da dificuldade de se encontrar exemplos que tenham validade geral. O segundo aspecto – o da bagagem necessária ou dos pressupostos demandados – remete-nos ao caráter subjetivo e subliminar, que vai situar ou localizar os paradigmas em planos inconscientes ou semiconscientes da mente humana, a partir de onde exercem sub-repticiamente o seu papel modelador. Vendo de outra forma, observe-se que, aqui, estão destacadas funções cognitivas dos paradigmas, enquanto que a instrumentalização profissional do aluno acima citada remete-nos às funções normativas deles.

Dessa combinação de funções cognitivas e de funções normativas, plenamente integradas e harmonizadas, segundo o índice representado pelo paradigma, resulta não apenas a forma segundo a qual a ciência é exercida, mas também, em boa medida, o próprio prestígio desfrutado pela ciência. Na mesma medida, fica evidenciado por que o conceito de paradigma se encaixa com tanta precisão no âmbito da ciência. Podemos, portanto, entender que ciência é ciência, sobretudo ou em grande medida, em virtude da presença de paradigmas científicos.

A harmonização entre pensar e agir, entre funções cognitivas e exercício normatizado da ciência, ficaria capenga se não atingisse, também, a natureza objeto da ciência. Por isso, Kuhn introduz o capítulo no qual explora as implicações das revoluções na concepção de mundo, afirmando, na página 144: “Até aqui argumentei tão-somente no sentido de que os paradigmas são parte constitutiva da ciência. Desejo agora apresentar uma dimensão na qual eles são também constitutivos da natureza”.

Felizmente, a ciência tem ignorado olimpicamente a filosofia moderna, que denunciou a relação sujeito-objeto, e recusa a possibilidade de haver correspondência entre pensamento e pensado. A ciência continua com sua pretensão de objetividade e sua perspectiva “ontológica”, buscando revelar as leis que regem o funcionamento do mundo. Pode fazer isso amparada nos resultados tecnológicos que têm produzido e nas intervenções bem-sucedidas que têm realizado na natureza. Por isso, Kuhn nem mesmo sente necessidade de argumentar ou de justificar a extensão do conceito de paradigma à própria constituição da natureza. Também, por isso, no posfácio de 1969, contempla a evolução científica nos seguintes termos:

Em geral uma teoria científica é considerada superior as suas predecessoras não apenas porque é um instrumento mais adequado para descobrir e resolver quebra-cabeças, mas também porque, de algum modo, apresenta uma visão mais exata do que é realmente a natureza. (KOHN, 1997, p. 253).

Ou seja, na medida em que o paradigma lhe fornece uma visão de mundo e normatiza o seu trabalho de investigação e na medida em que os testes que realiza confirmam os pressupostos de que se utiliza e lhe faculta convincente compreensão sobre o funcionamento da natureza, o cientista despreza filigranas epistemológicas e assume ser a natureza de certa forma e simplifica tudo, aplicando o poder normativo do paradigma à própria constituição da natureza. Com isso, o modelo básico de interação entre mente (sujeito) e natureza (objeto), mediado por um método adequado que orienta o labor científico, fica estruturalmente harmonizado pela ação do paradigma.

O ajuste preciso do conceito de paradigma ao campo da ciência não implica, entretanto, que o conceito de paradigma apenas tenha aplicação restrita a esse campo. Nós, em particular, esposamos a tese de que nenhuma intelecção se torna possível sem a presença de um referencial subjetivo. Entendemos que o conhecimento constitui apenas interpretação no âmbito de uma cultura, mas entendemos, também, que o seu valor depende justamente da sustentabilidade de sua pretensão de corresponder à natureza que procura interpretar. Uma tese sem correspondência no mundo seria absolutamente inútil. Essa posição ampara na tese do logos normativo, defende que existe, sim, ponto de contato entre o objetivo e o subjetivo, mas, em lugar de tentar localizá-lo entre o discurso proferido e a natureza visada no discurso, assevera que se trata de um ponto único, localizado no homem, na consciência, mais precisamente, na relação entre cérebro e consciência. Com isso, a tese lança nova luz sobre a relação sujeito-objeto, esclarece as coisas e permite-nos ver melhor o que pertence a cada âmbito.

Uma das consequências desse esclarecimento é justamente elevar o referencial à condição de componente central de toda intelecção, isto é, de fator modelar, condicionante e determinante das interpretações que a mente humana realiza. Nesse contexto, o termo paradigma não inaugura uma classe autônoma e independente de conceitos, mas constitui elemento integrante da classe dos referenciais. Isso não significa depreciar o conceito, ao contrário, significa evitar a sua vulgarização e preservá-lo para indicar aqueles casos nos quais o papel modelar e paradigmático seja predominante. Isso torna o paradigma o mais nobre dos referenciais e o preserva para indicar sistemas teóricos fundadores de concepções de mundo, não só dotadas de abrangência, mas também dotadas de forte papel organizador da realidade tanto no plano subjetivo quanto no plano objetivo. Não queremos, desse modo, defender que o conceito não possa ser usado para diferenciar a Física de Nilton da Física de Einstein ou para indicar o padrão ou o modo de ser de uma ciência ou um saber bem caracterizado, mas, ao menos, para indicar, como sua aplicação mais nobre, a indicação de uma concepção de mundo, preferencialmente, de abrangência cósmica, que nos forneça um mundo organizado para viver e que nos permita, em alguma medida, superar o caos mental próprio da ausência de paradigmas ou, mais precisamente, próprio da ausência de paradigmas formais conscientemente partilhados.

E, aqui, chegamos à nossa tese essencial sobre um uso nobre do conceito de paradigma: no limite, o estado de barbárie pode ser caracterizado pela completa ausência de referenciais formais, da mesma forma que o ideal civilizatório pode ser caracterizado pela comunhão, universal, consciente e consentida, de paradigmas formais. Entre esses dois extremos, inatingíveis na prática, podemos perceber possíveis diferentes estágios ou modelos civilizatórios, dependentes das propriedades estruturais dos paradigmas tanto em termos de organização da capacidade cognitiva quanto de normatização da ação coletiva e, naturalmente, também, em termos de iluminação e de revelação da natureza. Parece razoável vincular o modelo civilizatório às propriedades estruturais do paradigma e, em razão disso, esperar que seja possível resgatar os paradigmas que possibilitaram as realizações das civilizações antigas que deixaram marcas indeléveis na história da humanidade. Parece, entretanto, menos promissor ou mais problemático ordenar tais modelos em uma escala de crescente civilidade, porque isso exigiria submeter os paradigmas a uma ordem qualquer, seja em complexidade, em capacidade heurística, em capacidade normativa, em capacidade de promover o bem-estar da população ou segundo outro critério qualquer. Essas dificuldades não estão presentes na caracterização dos dois extremos, porque o ideal civilizatório exige não só um paradigma que tenha idealmente abrangência cósmica e validade universal, mas também inclua plena consciência e pleno acordo da população sobre a sua vigência e sobre o seu cultivo – característica esta que situa o ideal civilizatório acima do modelo civilizatório da atualidade, no qual o paradigma opera subliminarmente sem consciência da população. Em face dessas dificuldades, somos levados a acompanhar Kuhn e declinar de conceituar paradigma em geral, o que não nos impede de conceituar a sua aplicação mais nobre. Essa aplicação mais nobre designamos de paradigma civilizatório, para tornar imediatamente evidente o seu objeto. Com isso, entendemos por paradigma civilizatório um princípio orientador, estruturador e modelador de um sistema teórico, que, usado coletivamente, alicerça, sustenta e produz, naturalmente, um padrão civilizatório.

A valorização do conceito de paradigma e a sua elevação à condição de paradigma civilizatório encontram também respaldo no plano da Psicologia. A experiência mostra-nos que o homem, qualquer que seja o seu nível cultural, interpreta o mundo e se expressa no mundo, tendo como base o que sabe e o que aprendeu pela vida, além da sua experiência pessoal de vida e do sistema de crenças que desenvolveu. Essa experiência lhe propicia um aprendizado e o mune de um acervo de conhecimentos a partir do qual ele interpreta e julga as coisas e as situações. Nem podia ser diferente. Caso o homem se pronunciasse em desacordo com a sua bagagem de conhecimento e em desacordo com o seu sistema de crenças, estaria configurada uma situação patológica de insanidade mental. Podemos, então, entender que essa bagagem de conhecimentos e de experiências constitui um referencial pessoal e difuso, com base no qual o homem interpreta o mundo, e podemos, também, entender que essa situação se afigura perfeitamente adequada como posicionamento humano individual.

Quando falamos de civilização, porém, falamos de realizações coletivas, de ações protagonizadas por um grupo significativo de pessoas que, apesar do número de agentes e da diversidade de ações, contemplam um padrão laboral bem definido e, por isso, são capazes de gerar produtos culturais bem caracterizados e um modelo civilizatório dotado de identidade própria. Na consideração dos pressupostos usados pela razão, essa ação coletiva sintonizada nos impõe realizar, também, uma passagem do plano individual para o plano coletivo, tendo em vista que nenhuma bagagem pessoal e individual serve de índice e de referência para embasar ações realizadas coletivamente, pela simples razão de que essa bagagem individual não pode ser transmitida ou ser transferida para os demais.

Mesmo em agrupamentos sociais menores, como clubes ou condomínios, a ação coletiva já exige a substituição dos referenciais individuais, mediante a formalização de um projeto comum, coletivamente aceito e assumido. Esse projeto, mesmo em se tratando de um condomínio, não pode ser imposto ou corresponder apenas ao que pensa um dos seus membros, por mais brilhante que seja, caso sua execução exija a participação da coletividade. Para que a ação comunitária seja capaz de capitalizar a sinergia própria da ação grupal, é indispensável que os seus membros comunguem de pressupostos comuns, os quais, na sua expressão mais simples, podem ser representados por um projeto que seja reconhecido como legítimo e adequado e que, ainda, seja aceito por todos. Esse projeto ou esse referente necessariamente precisa ser formal, para que possa ser discutido, transmitido e compreendido por todos. Uma vez definido, estabelecido e modelado em projeto conveniente, o processo de aperfeiçoamento comunitário ou a evolução comunitária pode ter curso pela execução desse projeto.

Sendo essa formalização indispensável em um condomínio com número reduzido de membros, onde a execução do projeto eventualmente pode envolver um número ainda menor de participantes, torna-se impossível imaginar que uma nação ou um povo possa desenvolver uma civilização dotada de identidade, sem comungar um paradigma civilizatório, ainda que ele se apresente como mero sistema de crenças comuns e ainda que opere de modo inconsciente na população. Modelos de civilização bem caracterizados, como os incas, os astecas, os maias, o Egito Imperial, a Grécia Clássica e tantas outras que deixaram legados arqueológicos que são testemunhas incontestes de períodos civilizatórios de admirável esplendor, evidenciam também a presença de identidades civilizatórias inconfundíveis e, portanto, de paradigmas civilizatórios bem caracterizados. A julgar pela lição que Kuhn nos lega sobre a história da ciência, podemos inferir que, depois da crise de estabelecimento do paradigma, cada uma dessas civilizações desenvolveu um período de normalidade civilizatória, durante o qual a população conseguiu extrair e fazer florescer as potencialidades estruturais contidas no paradigma. Os resultados mais duradouros dessas construções coletivas respondem pela admiração que nos invade quando visitamos seus legados arqueológicos.

Quer nos parecer que essa argumentação seja suficiente para nos autorizar o uso do conceito de paradigma civilizatório, quando se tratar de indicar os pressupostos culturais ou o sistema de crenças e de valores que respondem pelos padrões ou pelos modelos factuais de civilização de que temos notícias. Temos consciência de que esse esforço conceitual é, também, um esforço de síntese, visando a disponibilizar ferramenta útil para efetiva intervenção na realidade objetiva. Para tanto, o conceito precisa não apenas ter uma sustentável pretensão de objetividade, como também admitir formalização em grau que possibilite o seu trânsito, a sua discussão e o seu compartilhamento. Ora, avaliar se ele atende ou não a tais requisitos exige a consideração de casos concretos nos quais fique bem demonstrado o papel determinante do paradigma sobre o modelo realizado de civilização. Assim, em nome de economia e de objetividade, vamos buscar esse resultado no próximo capítulo, concomitantemente à leitura paradigmática do modelo ocidental de civilização e à caracterização da crise que o atinge.

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