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Carta VII

Platão - 01/01/2002

CARTA VII

 DE PLATÃO AOS AMIGOS E PARENTES DE DION:

 Boa Sorte!

Introdução

 Escrevíeis-me convictos da conformidade das vossas ideias com as de Dion, e pedíeis-me instantemente para vos ajudar na medida do possível pelos meus actos e palavras.

Seguramente, consinto em colaborar, se na verdade a vossa maneira de ver e os vossos desejos são os mesmos que os seus, de contrário, teria necessidade de reflectir melhor. Das suas concepções e projectos posso falar com segurança. Com efeito, quando pela primeira vez fui a Siracusa tinha cerca de quarenta anos; Dion tinha a idade que tem hoje Hiparinos (1) e via então as coisas como nunca deixou de as ver: os Siracusanos, na sua opinião, deveriam ser livres e reger-se pelas melhores leis. Não seria, pois, surpreendente que as ideias políticas de Hiparinos, graças a uma intervenção divina, surgissem conformes às de Dion. Quanto à sua gênese, vale a pena ser conhecida, tanto dos jovens como dos mais velhos.

Vou tentar fazer-vos a narração desde a origem: as presentes circunstâncias a tanto dão ensejo.

 Formação das ideias Políticas de Platão

 Outrora na minha juventude experimentei o que tantos jovens experimentaram. Tinha o projecto de, no dia em que pudesse dispor de mim próprio, imediatamente intervir na política. Ora vejamos como então se me apresentara a situação dos negócios da cidade: a forma de Governo existente, sujeita a críticas diversas, conduziu a uma evolução. A cabeça da nova ordem cinquenta e um cidadãos foram eleitos chefes, onze na cidade, dez no Pireu (estes dois grupos foram encarregados da ((ágora)) e de tudo o que concernia à administração das cidades) — mas trinta constituíam a autoridade superior com poder absoluto (2) Vários de entre eles sendo ou meus parentes (3) ou conhecidos, logo me atraíram a si, para tarefas que me convinham. Alimentei ilusões que não tinham nada de espantoso devido à minha juventude. Imaginava, de facto, que eles governariam a cidade, desviando-a dos caminhos da injustiça para os da justiça. Observava também com ansiedade o que iriam fazer. Ora, vi aqueles homens em pouco tempo fazerem lamentar os tempos da antiga ordem, como uma idade de ouro. Entre outros, ao meu querido e velho amigo Sócrates, que não me canso de proclamar como o homem mais justo do seu tempo, quiseram associá-lo à tentativa de levar pela força um cidadão a ser condenado à morte, isto com o objectivo de, por alguma forma, o comprometerem na sua política. Sócrates não obedeceu o preferiu expor-se aos maiores perigos, a tornar-se cúmplice de acções criminosas (4). Face a todas estas coisas e a outras do mesmo gênero, e de não menos importância, fiquei indignado e afastei-me das misérias dessa época. Depressa os trinta caíram e, com eles, todo o seu regime. De novo, e ainda que com maior prudência, estava desejoso de me ocupar das tarefas do Estado. Ocorriam então, já que era um período perturbado, muitos factos revoltantes e não é de admirar que as revoluções tenham servido para multiplicar os actos de vingança pessoal. Entretanto, os que regressaram usaram de bastante mais moderação (5). Mas, sem que eu me desse conta de como acontecia, cidadãos poderosos conduzem aos tribunais este mesmo Sócrates, nosso amigo, e fizeram-lhe uma acusação das mais graves, que de forma alguma ele merecia: é por impiedade que uns o acusam diante do tribunal e outros o condenam e fazem morrer o homem que, quando eles próprios afastados do poder e caídos em desgraça, não quis participar na criminosa prisão de um dos seus amigos, então banido. Assistindo a isto e vendo os homens que conduziam a política, mais me debruçava sobre as leis e os costumes, e quanto mais avançava na idade, mais me parecia difícil bem administrar, os negócios do Estado. Por um lado, sem amigos e sem colaboradores fiéis, isso não me parecia possível. Ora, entre os cidadãos actuais não era cómodo encontrá-los, pois já não era segundo os usos e costumes dos nossos antepassados que a nossa cidade era governada; quanto a adquirir novos não seria fácil fazê-lo. Além disso, a legislação e a moralidade estavam corrompidas a tal ponto, que eu, inicialmente pleno de ardor para trabalhar a favor do bem público, considerando esta situação e vendo como tudo caminhava à deriva, acabei por ficar confuso. Não deixei, entretanto, de procurar nos acontecimentos e especialmente no regime político os possíveis indícios de melhoras, mas esperei sempre o bom momento para agir [Osório diz: é o kairós]. Acabei por compreender que todos os Estados actuais são mal governados, pois a sua legislação é praticamente incurável sem enérgicos preparativos coincidindo com felizes circunstâncias. Fui então irresistivelmente conduzido a louvar a verdadeira filosofia e a proclamar que somente à reconhecer onde está a justiça na vida pública e privada. Portanto, os males não cessarão para os humanos antes que a raça dos puros e autênticos filósofos chegue ao poder ou antes que os chefes das cidades, por; uma divina graça, se não ponham a filosofar verdadeiramente.

 Primeira viagem à Sicília

 Tal era o estado das minhas reflexões quando cheguei à Itália e Sicília pela primeira vez. Então, essa vida, aí considerada feliz, preenchida por perpétuos festins italianos e siracusanos (6), enojava-me de todo: emborrachar-se duas vezes por dia, nunca se deitar sozinho à noite... e tudo o que completa este género de existência. Com semelhantes hábitos não existe homem algum sob o céu que, levando esta vida desde a infância, possa tornar-se sensato (que natureza seria tão maravilhosamente equilibrada?), nem jamais adquirir sabedoria; outro tanto diria de todas as outras virtudes. Da mesma forma, não existe cidade que possa tornar-se tranquila sob as suas leis, por boas que sejam, se os cidadãos crêem dever entregar-se a loucas políticas e, além disso, abandonar-se à completa ociosidade, salvo os banquetes ou libações —, e quando despendem os seus esforços a consumar os seus amores. Necessariamente, tais Estados não cessarão jamais de caminhar em sobressaltos de tirania em oligarquia e em democracia, e os que governam não suportarão mesmo ouvir falar no nome de um governo de justiça e de igualdade.

Fazia, então, estas reflexões e as precedentes durante a minha viagem a Siracusa. Seria por acaso? Creio antes que um deus se esforçava por pôr em marcha todos os fatos que se desenrolam presentemente relativos a Dion e aos Siracusanos. E é preciso ainda temer piores males, se não seguirdes os conselhos que vos dou pela segunda vez. Mas então como posso sustentar que a minha chegada à Sicília estivesse na origem de todos estes acontecimentos? Nas minhas relações com Dion, que era ainda jovem, desenvolvendo-lhe as minhas opiniões sobre o que me parecia o melhor para os homens e exortando-o a realizá-las, arrisquei-me a não me ter apercebido de que, de certa maneira, trabalhava inconscientemente para a queda da tirania. Pois Dion, muito aberto a todas as coisas, especialmente aos discursos que lhe fazia, compreendia-me admiravelmente, melhor que todos os jovens com quem jamais convivi [Osório diz: melhor que Alcibíades e Aristóteles?]. Decidiu enveredar por uma vida diferente da que levava a maior parte dos italianos e sicilianos, dando muito mais importância à virtude que a uma existência de prazer e sensualidade. Desde então, a sua atitude tornou-se cada vez mais odiosa aos partidários do regime tirânico, e isto até à morte de Dionísio (7).

Depois deste acontecimento, projectou não reservar apenas para si estes sentimentos, que a verdadeira filosofia lhe havia feito adquirir. Verificou, de resto, que outros espíritos tinham sido conquistados, poucos sem dúvida, mas alguns, no entanto, e entre eles julgou, com a ajuda dos deuses, poder em breve contar (o jovem) Dionísio. Ora, se assim fosse, que vida de inimaginável felicidade não seria a dele, Dionísio, e de todos os Siracusanos! Além disso, julgou que eu devia, de qualquer forma, voltar o mais rapidamente possível a Siracusa para cooperar nos seus projectos: não esquecia facilmente que a nossa ligação lhe tinha inspirado uma vida bela e feliz. Se agora ele inspirasse esse mesmo desejo em Dionísio, como tentava, tinha a maior esperança de estabelecer em todo o país, sem massacres, sem mortes, sem todos esses males que actualmente se produzem, uma vida feliz e verdadeira. Dominado por estes justos pensamentos, Dion persuadiu Dionísio a chamar-me e ele mesmo me rogou que fosse o mais depressa possível, não importava como, antes que outras influências se exercessem sobre Dionísio, conduzindo-o a uma existência diferente da vida perfeita. Devo ser um pouco longo, mas eram estas as suas palavras: ((Que melhor ocasião esperaríamos, dizia, que aquela que actualmente nos oferece o favor divino?)). Depois, descrevia-me esse império da Itália e da Sicília, o poder que tinha, a juventude de Dionísio e o seu gosto muito vivo pela filosofia e pela ciência, seus sobrinhos e parentes, tão fáceis de captar para a doutrina e para a vida que eu não cessava de enaltecer, e prontos, também eles, a influenciar Dionísio. Em suma, nunca como agora se podia esperar realizar a união, nos mesmos homens, da filosofia e do Governo das grandes cidades. Tais eram, estas e outras, as suas exortações. Mas eu, por um lado, não deixava de estar inquieto a respeito dos jovens, sobre o que aconteceria um dia — porque os seus desejos são impetuosos e mudam-se muitas vezes em sentido contrário —, sabia, por outro lado, que Dion possuía um carácter naturalmente grave e que tinha uma idade já madura. Como eu reflectisse e me interrogasse se valeria ou não a pena pôr-me a caminho e ceder às solicitações, o que, no entanto, fez pender a balança foi o pensamento de que se nunca puderam ser realizados os meus planos legislativos e políticos seria agora o momento de experimentar: não tinha senão que persuadir suficientemente um único homem e tudo estaria resolvido.

Segunda viagem à Sicília

Neste estado de espírito, aventurei-me a partir. Não me impeliam os motivos que alguns imaginam, mas antes o receio de, aos meus próprios olhos, passar por fala-barato que não quer jamais deitar mãos à obra e de me arriscar a trair a hospitalidade e a amizade de Dion numa altura em que ele corria sérios riscos. Ora, se lhe acontecesse qualquer coisa, se, expulso por Dionísio e pelos seus outros adversários, aparecesse diante de mim e me dissesse: «Platão, sou um proscrito; e não foram os hoplitas ou os cavaleiros que me fizeram falta para me defenderem dos meus inimigos, mas sim aqueles persuasivos discursos através dos quais podes, bem o sei, levar os jovens ao caminho do bem e da justiça e estabelecer ao mesmo entre eles, em qualquer circunstância, laços de amizade e camaradagem [Osório diz: eram os mesmos de Sócrates. Só os jovens!]. Isto faltou-me por tua culpa, razão por que deixei Siracusa e me encontro aqui. Mas o meu destino não é ainda a tua maior vergonha: à filosofia, de que falas a todo o momento e que dizes desprezada pelos homens, como não a terás traído tanto como a mim, pois também ela dependia de ti? Se nós habitássemos Mégara (8) e eu te chamasse, certamente terias corrido em meu auxílio ou então considerar-te-ias o pior dos homens. E agora agarras-te ao pretexto da distância, da importância da travessia, da fadiga e acreditas que podes escapar a que no futuro te chamem fraco? Estou convencido de que ainda não chegaste a tanto.)) Pois bem, que poderia eu responder de válido a estas palavras? Nada. Parti, portanto, por motivos justos e razoáveis, tanto quanto o podem ser os motivos humanos, deixando por sua causa as minhas ocupações habituais que estavam longe de ser medíocres, para ir viver sob a alçada de uma tirania que em nada parecia convir nem aos meus ensinamentos nem à minha pessoa. Apresentando-me em vossa casa saldava a minha dívida para com Zeus hospitaleiro (9) e livrava de qualquer censura o filósofo que, em mim, teria sido difamado, se, por comodismo e timidez, me tivesse desonrado.

Quando cheguei — não é necessário que nos alonguemos mais — apenas encontrei perturbações à volta de Dionísio: caluniava-se Dion junto do tirano. Defendi-o com todas as minhas forças, mas o meu poder era fraco e ao cabo de cerca de três meses Dionísio acusou Dion de conspirar contra o regime tirânico, fê-lo embarcar num pequeno barco e expulsou-o vergonhosamente. Depois disto, nós, os amigos de Dion, temíamos ver um ou outro inculpado e punido como cúmplice das intrigas de Dion. A meu respeito, corria já em Siracusa o boato de que eu tinha sido condenado à morte por Dion, como sendo a causa de tudo quanto acontecera. No entanto, este último, vendo-nos assim alarmados e receando que o medo nos conduzisse a actos mais graves, tratava-nos com benevolência, e a mim especialmente encorajava-me, levava-me a ter confiança e pedia-me instantemente que ficasse, porque, se o deixasse, nada de bom adviria para ele, ao contrário do que aconteceria se eu permanecesse. Eram estas as razões por que ele fingia suplicar-me com insistência. Ora, nós sabemos até que ponto os pedidos dos tiranos se confundem com verdadeiras ordens. Assim, tomou medidas para impedir a minha partida: ordenou que me conduzissem e instalassem na Acrópole. Nenhum capitão de navio me poderia trazer dali contra a vontade de Dionísio, a menos que ele desse uma ordem expressa de embarque. Mercadores ou guardas de fronteira, não existia ninguém que, surpreendendo-me a tentar deixar sozinho o país, me não tivesse mandado parar e conduzido imediatamente junto de Dionísio; a tal ponto que um novo boato se espalhava, completamente contrário ao primeiro: Dionísion, dizia-se, havia-se ligado a Platão por uma fortíssima amizade. De que se tratava, na realidade? É necessário dizer a verdade. Com o tempo, ele ia, sem dúvida, afeiçoando-se mais a mim, à medida que se familiarizava com os meus modos e o meu carácter, mas, por outro lado, queria que eu demonstrasse mais estima por ele do que por Dion e que acreditasse ser a sua amizade muito maior que a deste último.

É extraordinário como ele fazia disso o seu ponto de honra. Hesitava, no entanto, em enveredar pelo caminho que lhe teria sido mais seguro, supondo que alguma vez tal fosse possível, isto é, em familiarizar-se como discípulo e auditor das minhas doutrinas filosóficas: ele receava, seguindo os propósitos dos caluniadores, que isso diminuísse de qualquer maneira a sua liberdade, sendo Dion o maquinados de tudo (10).

Por meu lado, eu sujeitava-me a tudo, fiel à primeira intenção que me havia trazido, no caso de que o desejo da vida filosófica viesse a seduzi-lo. Mas as suas resistências dominaram-no.

CONSELHOS DE PLATÃO: Qual deve ser a atitude do sábio em face de um mau governo

 Foram estas, cissitudes que preencheram o primeiro período da minha estada na Sicília. Em seguida, parti, mas regressei uma vez mais devido aos pedidos incessantes de Dionísio. Até que ponto foram razoáveis e justos os meus motivos e todas as minhas acções? Mas, antes de os contar, dar-vos-ei os meus conselhos e dir-vos-ei o que se deve fazer na situação presente, deixando para mais tarde a resposta aos que me interrogam sobre quais seriam as minhas intenções ao regressar uma segunda vez, para que o acessório da minha narração não se torne o assunto principal (11). É, portanto, isto o que tenho a dizer.

O conselheiro de um homem doente, se esse doente segue um mau regime, não tem como primeira obrigação obrigá-lo a modificar o seu género de vida? Se o doente quiser obedecer, nesse caso dar-lhe-á novas prescrições. Se recusa, acho eu que é dever de um homem recto e de um verdadeiro médico não se prestar mais a novas consultas [Osório diz: diferentemente de Górgias, que diz que o discurso é capaz de convencer o doente!]. Aquele que se resigna considero-o, ao contrário, como um fraco e um curandeiro. O mesmo se passa com um Estado que tenha à cabeça um ou vários chefes. Se governado normalmente é bem guiado e necessita de um conselho sobre qualquer ponto útil, será razoável que se lho dê. Se, pelo contrário, se trata de Estados que se afastam completamente de uma justa legislação e se recusam mesmo a segui-la, mas ordenam ao seu conselheiro político que ponha de lado a constituição e nada mude, sob ameaça de pena de morte, tornando-se pelas suas instruções o servidor de vontades e caprichos, ao mostrar-lhes os caminhos mais cómodos e mais fáceis, o homem que a tal se presta, considero-o eu um fraco; em contrapartida, aquele que a isso se recusa é, para mim, um homem corajoso. São estes os meus sentimentos, e quando alguém me consulta sobre um ponto importante da sua vida, seja assunto de dinheiro seja de higiene do corpo ou da alma, se a sua conduta habitual se me afigura responder a certas exigências, ou se, pelo menos, parece querer conformar-se com as minhas prescrições nos casos que submete à minha opinião, de bom grado eu me torno seu conselheiro e não me afasto dele, agindo por dever de consciência. Mas, se ninguém me pergunta nada ou se é evidente que não escutarão a mínima das minhas opiniões, eu não vou, por minha própria iniciativa, oferecê-las a tais pessoas, e não obrigarei ninguém, nem que seja o meu próprio filho. Ao meu escravo, sim, a esse eu daria conselhos e, se escravo, recusasse, eu impô-los-ia. Mas a um pai ou a uma mãe considero ímpio constrangê-los, salvo em caso de loucura. Levem um género de vida que lhes agrade, a eles, e não a mim, que não me parece conveniente irritá-los em vão com censuras, nem tão-pouco lisonjeá-los com condescendência, proporcionando-lhes o modo de satisfazer vontades que eu rejeitaria na minha própria vida. São estas as disposições com que deve viver o sábio relativamente ao seu país. No caso de lhe parecer que não é bem governado que o diga, mas unicamente se está seguro de o não fazer em vão, ou de não se arriscar a morrer, mas que não use de violência para derrubar a constituição da sua pátria, quando não puder ser bem sucedido senão à custa de exílios e massacres; então que fique tranquilo e que implore o favor dos deuses para si e para a cidade.

Conselhos a Dionísio

 É, portanto, deste modo que eu vos poderei aconselhar, e é assim que, de acordo com Dion, eu induzia Dionísio logo de início a viver cada dia de maneira a tornar-se cada vez mais senhor de si próprio e a conquistar partidários e amigos fiéis, para que não lhe acontecesse o mesmo que a seu pai [Osório diz: aqui Platão admite que é possível ensinar a virtude?]. Este último tinha conquistado na Sicília um grande número de cidades importantes devastadas pelos bárbaros. Mas, depois de as ter reconstruído, não conseguiu instalar em cada uma delas um governo seguro, confiado a amigos escolhidos por ele quer entre estrangeiros de diversas origens, quer entre os seus irmãos que ele próprio havia educado, porque eram mais novos, e a quem de simples particulares fez chefes e, de pobres, homens prodigiosamente ricos. De nenhum deles pôde tornar, apesar dos seus esforços, um associado do seu poder, nem pela persuasão, nem pela instrução, nem pelos seus favores ou pela afeição de família. Nisso mostrou-se sete vezes inferior a Dario, que, confiando em pessoas que não eram nem seus irmãos, nem educados por ele, mas unicamente aliados na sua vitória sobre o eunuco medo, dividiu o seu reino em sete partes (12), cada uma delas maior que toda a Sicília, e encontrou neles colaboradores fiéis que nem lhe criaram nenhuma dificuldade, nem as suscitaram entre si. Deu assim o exemplo do que devia ser o bom legislador e o bom rei, porque, graças às leis que proclamou, conservou até hoje o Império Persa. Vede ainda os Atenienses. Eles próprios não colonizaram as numerosas cidades gregas invadidas pelos bárbaros, mas anexaram-nas já povoadas. No entanto, conservaram o poder durante setenta anos, porque em todas as cidades possuíam partidários. Mas Dionísio, que tinha reunido toda a Sicília numa só cidade, tomando como sabedoria o não se fiar em ninguém, manteve-se com dificuldade, porque tinha escassos amigos e poucos partidários fiéis. Ora, nada é mais significativo do vício ou da virtude que a falta ou a abundância de tais homens. Eram estes os conselhos que Dion e eu dávamos a Dionísio, já que a situação em que se achava por culpa de seu pai o privava tanto da sociedade que resulta da educação como daquela que as boas relações proporcionam. Exortá-mo-lo a que se preocupasse, de tudo, em procurar, junto dos parentes e companheiros da sua idade, outros amigos cujo ideal comum fosse atingir a virtude, e que acima de tudo conseguissem o seu acordo para o mesmo objectivo, do que tinha extraordinária necessidade. Não falávamos, bem entendido, tão abertamente — isso teria sido perigoso —, mas, por meias palavras, insistíamos em que era esse o meio de todo o homem se proteger a si e àqueles a quem governava e que agir de outro modo seria chegar a resultados completamente opostos. Se, enveredando pelo caminho que lhe indicávamos, tornando-se sensato e prudente, ele reconstruísse as cidades devastadas na Sicília, as interligasse por meio de leis e constituições que solidificassem a sua união mútua e os seus pactos com ele, visando a defesa contra os bárbaros, Dionísio não duplicaria apenas o reino de seu pai, mas na verdade o multiplicaria. Ficaria então muito mais apto a submeter os Cartagineses do que o havia ficado Gélon (13), enquanto o seu pai, pelo contrário, se tinha visto obrigado, no seu tempo, a pagar um tributo aos bárbaros. Tais eram as nossas conversas e conselhos que lhe dávamos nós, que conspirávamos contra ele, como se insinuava de diversos lados —rumores esses em que Dionísio acreditou, que fizeram exilar Dion e me causaram a mim um enorme receio. Mas, para acabar a narrativa dos muitos acontecimentos que se desenrolaram em tão pouco tempo, Dion voltou de Atenas e do Peloponeso e deu na verdade uma licão a Dionísio.

Quando, por duas vezes, Dion libertou á cidade e a restituiu aos Siracusanos, estes recompensaram-no como o havia feito Dionísio, quando, educando-o e preparando-o como um rei digno do poder, se esforçava por estabelecer entre si uma total familiaridade de existência. No entanto, Dionísio preferia ainda a familiaridade dos caluniadores que acusavam Dion de aspirar à tirania e de culminar com este fim todos os seus empreendimentos de então. Esperava-se, dizia-se, que Dionísio, deixando-se prender pelos encantos do estudo, se ,desinteressasse do governo e lho confiasse, de tal modo que ele o açambarcaria por astúcia, expulsando desta maneira Dionísio. Na época, estas calúnias triunfaram, como triunfaram quando espalhadas uma segunda vez em Siracusa: vitória, de resto, absurda e vergonhosa para os que eram seus autores [Osório diz: sempre foi um derrotado pela mentira?].

Que aconteceu então? É necessário que o saibam aqueles que reclamam o meu auxílio nas dificuldades actuais. Eu, Ateniense, amigo e aliado de Dion, dirijo-me ao tirano com o propósito de fazer ceder a discórdia perante a amizade. Mas nada consegui na minha luta contra os caluniadores. Quando Dionísio, usando honras e riquezas, me quis atrair— e fazer de mim uma testemunha e um amigo pronto a justificar o exílio de Dion, todos os seus esforços fracassaram. Mais tarde, regressando à pátria, Dion levou consigo de Atenas dois irmãos, aos quais o ligava uma amizade que não tinha nascido da filosofia, mas sim da vulgar camaradagem que as relações de hospitalidade ou os laços que unem os iniciados nos diferentes mistérios (14) fazem nascer. Tais foram, portanto, os seus companheiros de regresso, ligados a ele pelos motivos indicados e ainda pela ajuda que lhe prestaram na viagem. Assim chegaram à Sicília. Ali, apercebendo-se de que Dion era suspeito de cobiçar a tirania junto destes mesmos Sicilianos que ele havia libertado, não contentes de traírem o seu amigo e anfitrião, tornaram-se os seus próprios carrascos, correndo, de armas na mão, a ajudar os assassinos. Não escondo esta acção vergonhosa e sacrílega, mas também não quero tornar a contá-la, porque muitos outros se encarregam ou se hão-de encarregar ainda de contar tais acontecimentos! Mas, quando, falando dos Atenienses, se diz que aqueles dois homens desonraram a nossa Cidade e lhe infligiram a marca da infâmia, essa é uma acusação que eu rejeito! É também um Ateniense, proclamo-o, aquele homem que, tendo ao alcance fortuna e honras, não traiu Dion. Com efeito, não era uma amizade vulgar a que os unia, mas sim uma comum educação liberal: unicamente nela deve confiar o homem sensato, muito mais do que em afinidades de corpo e alma. Portanto, não é justo que aqueles dois homens, autores da morte de Dion, tenham sido para Atenas motivo de afronta, como se nunca tivessem existido dois homens fazendo uma acção escandalosa!

Conselhos aos parentes e amigos de Dion

 Disse tudo isto, para que sirva de advertência aos parentes e amigos de Dion. Pela terceira vez, repito o mesmo conselho para vós, os terceiros (15). Que a Sicília não seja mais que qualquer outra cidade subjugada por déspotas, mas por leis. Porque isso nem é bom para os que escravizam nem para os que são escravizados, para eles, ou para os filhos, ou para os filhos dos seus filhos [Osório diz: mas Platão não é escravagista!?]. É mesmo uma empresa absolutamente nefasta. Só os caracteres mesquinhos e servis gostam de se lançar sobre tais lucros, só aqueles que ignoram tudo que de divino e humano é justo e bom para o futuro e para as circunstâncias actuais. Assim, tomei a meu cargo convencer Dion em primeiro lugar, depois Dionísio e agora vós. Escutem-me, pelo amor de Zeus, terceiro Salvador. Vede Dionísio e Dion: o primeiro não me acreditou e vive ainda mais miseravelmente, o segundo, que seguiu os meus conselhos, morreu mas morreu com honra, porque àquele que aspira ao bem supremo, para si e para a Cidade, por mais que sofra, nada lhe pode acontecer que não seja justo e belo. Nenhum de nós é imortal por natureza e o que viesse a sê-lo não seria feliz, ao contrário do que imagina muita gente. Com efeito, o autêntico bem e o autêntico mal não existem no que não tem alma, mas unicamente na alma separada ou unida ao corpo. É preciso acreditar verdadeiramente em tão antigas e venerandas tradições, que nos revelam a imortalidade da alma, a existência de julgamentos e penas terríveis que se hão-de sofrer quando a alma se libertar do corpo [Osório diz: é o Platão cristão antes do cristianismo!]. É esta a razão por que devemos considerar menor mal o facto de sermos nós as vítimas de grandes crimes ou de grandes injustiças do que o facto de sermos os seus autores. O homem ambicioso e de alma pobre não escuta esta maneira de falar. Se a percebe, pensa que deve rir-se dela, e lança-se sem vergonha como um animal selvagem sobre tudo o que lhe proporciona até à saciedade o indigno e grosseiro prazer a que se chama indevidamente amor. Cego que não vê a quais das suas acções se aplica a impiedade, que espécie de mal está sempre ligado a cada um dos seus crimes, impiedade que necessariamente a alma injusta arrasta com ela quer neste mundo quer na morte, em todas as suas vergonhosas e miseráveis peregrinações. Era, pois, com estas e outras considerações que eu persuadia Dion. Tinha motivos tão justos de me indignar contra aqueles que o mataram como contra Dionísio. Causaram-me, uns e outros, a mais grave perda, a mim e — posso dizê-lo — a todos os homens. Os primeiros mataram um homem que queria praticar a justiça: o segundo manteve-se afastado da Justiça durante todo o seu reinado. Este, no entanto, detinha o poder supremo e, se tivesse reunido numa só pessoa o poder e a filosofia, teria feito explodir aos olhos de todos — Gregos e Bárbaros — e teria gravado suficientemente no espírito de todos esta verdade: nem as cidades nem os indivíduos poderiam ser felizes sem enveredarem por uma vida de sabedoria orientada pela justiça, quer possuíssem por si próprios estas virtudes quer tivessem sido criados e instruídos segundo costumes de mestres piedosos. Foi este o mal que Dionísio causou; comparado com isto, nada mais conta para mim. Quanto ao assassino de Dion, sem o saber, agiu tal como Dionísio. Porque Dion, tenho a certeza disso, tanto quanto um homem pode responder por outro homem, se tivesse possuído o poder não governaria senão deste modo: uma vez libertada Siracusa, sua pátria, da escravidão, empregaria todos os meios possíveis para dar aos cidadãos as melhores e mais justas leis, interessando-se, depois, pelo repovoamento da Sicília, e a sua libertação do jugo bárbaro (expulsando-os e submetendo os outros mais facilmente que o fizera Hierão) (16).

Se tudo isto fosse realizado por um homem justo, corajoso e ao mesmo tempo sábio e filósofo, o apreço pela virtude ter-se-ia infiltrado no povo, propagar-se-ia por todos os homens, e se Dionísio me tivesse escutado, essa mesma virtude té-los-ia salvo [Osório diz: então é possível ensinar a virtude?]. Mas, na realidade, ou deus ou demónio desceu, através do desprezo pelas leis e pelos deuses e, acima de tudo, através da audácia da estupidez em que todos os males desenvolvem as suas raízes, crescem e, com a continuação, fornecem a quem os produziu um fruto extremamente amargo (17), esta divindade uma segunda vez arruinou e destruiu tudo.

Agora, no entanto, não usamos senão palavras de esperança, para evitarmos terceira vez os maus presságios. Não vos aconselho menos — a vós, seus amigos — a imitar Dion, o seu amor pela pátria, a sabedoria da sua vida, do que a tentar igualmente realizar os seus Projectos (ensinei-vos, claramente, quais eram), sob os melhores auspícios. Aquele de entre nós que não puder viver à maneira dória, à maneira dos antigos, e quiser seguir o tipo de existência dos carrascos de Dion e os costumes sicilianos, a esse, não lhe pedis que nos ajude e não acrediteis que se possa algum dia confiar nele ou que ele proceda de modo são. Aos outros chamai-os a colonizar a Sicília e viver aí, sob iguais leis comuns, quer eles venham da própria Sicília ou de qualquer parte do Peloponeso. E não receeis Atenas (18), porque também aí se acham homens que ultrapassam os outros em virtude e odeiam os audaciosos assassinos dos seus hóspedes. Mas se tudo isso demorasse e se vós estivésseis a mãos com sedições contínuas e todas as espécies de perturbações renovando-se cada dia, quem quer que tenha recebido da divindade o mínimo índice de bom senso [Osório diz: é isso que diz o mito de Protágoras?] compreenderá que os males das revoluções não cessarão nunca, antes que os vencedores renunciem a retribuir o mal com mal, batalhas, exílios e assassínios e a tirar vingança dos seus inimigos. Pelo contrário, que eles se dominem bastante para estabelecer leis comuns tão favoráveis aos vencidos como a eles próprios e exigir a observação disso por dois meios de constrangimento: o respeito e o receio. O receio, obtê-lo-ão eles, manifestando a superioridade da sua força material; o respeito, mostrando-se homens que, sabendo dominar os seus desejos, preferem e podem servir as leis. Não é possível que uma cidade, onde se castiga rigorosamente a revolução, veja de outro modo o fim das suas misérias, mas perturbações, inimizades, ódios, traições, reinam habitualmente no seio de tais cidades (19)! Em relação aos vencedores, quaisquer que eles sejam, se querem verdadeiramente a conservação do Estado, eles escolherão entre si homens que sabem ser os melhores dos gregos, antes de tudo homens idosos, com mulheres e filhos e descendendo de numerosos antepassados virtuosos e ilustres [Osório diz: virtude como herança?], possuindo todos uma grande fortuna (para uma cidade de dez mil habitantes cinquenta seriam suficientes). É preciso atraí-los, à força de pedidos e honras, em seguida suplicar-lhes e obrigá-los, depois de terem prestado juramento, a instituírem leis, a não favorecerem nem vencedores nem vencidos, mas sim a estabelecerem a igualdade e comunidade de direitos em toda a cidade (20). Uma vez as leis estabelecidas, tudo se resume nisto. Porque, se os vencedores se mostram mais submissos às leis que os vencidos, a salvação e a felicidade reinarão em toda a parte e os males serão banidos. Caso contrário, não recorram nem a mim nem a ninguém para cooperar com gente que não escute esses conselhos. Com efeito, eles assemelham-se como gémeos aos planos que Dion e eu, no nosso amor por Siracusa, tentámos põr em prática pela segunda vez. A primeira foi durante aquela outra empresa tentada com o próprio Dionísio para realizar o bem comum, mas que uma fatalidade mais forte que os homens cortou pela raiz. Portanto, tratai agora de ser mais felizes e de chegar ao fim da vossa tarefa coma ajuda do destino e a favor dos deuses (21).

 Fim da parte parenética Continuação da narrativa

 Estes são, pois, os meus conselhos e as minhas prescrições, tal como a narrativa da minha primeira viagem para junto de Dionísio. Relativamente à minha segunda partida e à minha segunda passagem, aqueles a quem isso interesse vão ter oportunidade de ver quanto tudo foi justo e razoável. O primeiro período (22) da minha estada na Sicília terminou da maneira como vos contei, antes dos meus conselhos aos familiares e amigos de Dion. Depois disso, esforcei-me por persuadir Dionísio a deixar-me partir. Mas, uma vez a paz restabelecida (decorria então a guerra na Sicília) (23), fizemos os dois as nossas convenções: Dionísio prometeu chamar-nos a Dion e a mim, assim que tivesse reafirmado o seu poder, e pedir a Dion que não considerasse a sua partida como um exílio, mas sim como uma vulgar mudança de residência. Isto assente, declarei-me pronto a regressar. Chamou-me quando concluiu a paz, mas pediu a Dion que esperasse ainda um ano. A mim, ordenava-me que fosse a todo o custo. Dion incitava-me a que me fizesse ao caminho: efectivamente, espalhava-se o boato, vindo da Sicília, que Dionísio se tinha tomado, de novo, de zelos pela filosofia. Dion pedia-me ardentemente que respondesse a esta chamada. Eu sabia bem que os jovens experimentam muitas vezes tais sentimentos em face da filosofia. No entanto, pareceu-me mais seguro deixar de lado, pelo menos de momento, Dion e Dionísio, e desagradei muito a ambos, respondendo-lhes que estava velho [Osório diz: Platão praticou a sua síndrome de Siracusa já velho] e que não se estava a agir segundo as nossas convenções. A esse respeito, creio eu, Arquitas (24) encontrou-se com Dionísio (na verdade, antes de eu partir tinha originado relações de amizade entre Arquitas, o governo de Tarento e Dionísio); em Siracusa havia também pessoas que conheciam os discursos de Dion e os tinham repetido a outros, estando toda a gente com a cabeça recheada de fórmulas filosóficas. Suponho que experimentaram discuti-Ias com Dionísio, persuadidos de que tinha aprendido comigo toda a minha doutrina. Ele que, de modo nenhum, tinha o espírito fechado estava extremamente vaidoso. Talvez achasse prazer também nestas questões e se envergonhasse de mostrar que durante a minha estada ali nada tinha aprendido comigo. Daí nasceu o desejo de ser esclarecido mais a fundo, enquanto simultaneamente era arrastado pela glória fácil. Apontei mais acima as razões por que não havia ele seguido as minhas lições quando da minha primeira viagem. Como eu tivesse chegado felizmente a minha casa e me recusasse a responder à sua segunda chamada, Dionísio, parece-me, encheu-se de uma vaidosa inquietação de que algumas pessoas julgassem que ele nada valia aos meus olhos, tal como se — tendo já verificado a natureza, o carácter e o modo de viver dele — eu estivesse tão descontente que me não quisesse apresentar junto dele. Mas, com toda a justiça, devo dizer a verdade e aceitar que, segundo os factos, se despreza a minha própria filosofia [Osório diz: Platão não era nada modesto!] e, ao contrário, apreciam a sabedoria do tirano. Portanto Dionísio, ao convocar-me pela terceira vez (25), enviou-me uma trirreme para me facilitar a viagem; enviou-me igualmente Arquedemos, um dos sícilianos de quem eu — pensava ele — fazia mais caso, um dos discípulos de Arquitas e alguns outros conhecidos meus da Sicília. Todos me falavam dos maravilhosos progressos que Dionísio tinha feito em filosofia. Ele próprio me mandou também uma longa carta, conhecendo como conhecia os meus sentimentos por Dion e o desejo deste me ver embarcar para Siracusa (26). A carta, concebida segundo todos estes tópicos, começava mais ou menos assim: ((Dionísio a Platão)) — Depois, vinham as saudações usuais e, sem transição, prosseguia nestes termos: ((Se eu te convencer a vires agora à Sicília, em primeiro lugar os negócios de Dion regularizar-se-ão como tu queres (sei bem que só me farás pedidos razoáveis e eu prestar-me-ei a eles). Senão, nada relativo a Dion, aos seus negócios ou à sua pessoa se arranjará ao teu modo.» Era esta a sua maneira de se expressar. Seria demasiado longo e fora de propósito citar o resto. Chegaram-me também outras cartas de Arquitas e dos Talentinos, elogiando muito a filosofia de Dionísio e acrescentando que, se eu não fosse agora, dar-se-ia a ruptura completa dos seus laços de amizade com Dionísio, laços esses de que era o artífice responsável e que não eram de modo nenhum pouco importantes para a política. Eram estes os apelos que me chegaram às mãos: os amigos da Sicília e da Itália puxavam-me a si, os de Atenas empurravam-me literalmente para fora com as suas súplicas e sempre com o mesmo refrão: não é necessário trair Dion, nem os anfitriões e os amigos de Tarento. Eu mesmo reflectia em que nada há de surpreendente no facto de um jovem bem dotado, ouvindo falar de assuntos elevados, se sentir cheio de entusiasmo pela vida perfeita. Era preciso, pois, ver cuidadosamente o que se passara, não fraquejar e não assumir a responsabilidade de uma tal ofensa, porque seria efectivamente uma ofensa, se me tinham dito a verdade.

Parti, tentando tranquilizar-me com estes raciocínios. Ia cheio de apreensões e com pressentimentos nada favoráveis. Vim — e a Zeus Salvador ergo a terceira taça (27) , nisso fui bem sucedido — porque fui ainda salvo, felizmente, e depois do deus é Dionísio a quem devo agradecer: vários queriam a minha morte; ele opõs-se a isso e mostrou um resto de pudor em relação a mim.

 Segunda viagem sob o reinado de Dionísio II

 Ao chegar, achei que devia, antes de tudo, assegurar-me se Dionísio era realmente unha e carne com a filosofia, ou se o que se dizia em Atenas não tinha qualquer fundamento. Ora, existe para prova como esta um método bastante elegante. Convém perfeitamente, quando aplicado aos tiranos, sobretudo se a sua linguagem está repleta de expressões filosóficas mal compreendidas, como acontecia no caso de Dionísio, conforme depressa me apercebi: é preciso mostrar-lhes o que é a obra filosófica em toda a sua extensão, o seu carácter próprio, as suas dificuldades, o labor que exige. É o auditor um verdadeiro filósofo, apto e digno desta ciência, porque dotado de uma natureza divina? 0 caminho que se lhe ensina parece-lhe maravilhoso; imediatamente ele se põe ao trabalho, não saberá já viver de outra maneira. Então, redobrando com os seus esforços os esforços do seu guia, ele não desiste antes de ter atingido o fim ou adquirido força bastante para se conduzir sem o instrutor [Osório diz: então é possível ensinar a virtude?]. É num tal estado de espírito que vive este homem: sem dúvida que se entrega às suas acções comuns, mas em tempo ou lugar algum se desliga da filosofia, desse tipo de vida que lhe confere espírito sóbrio, inteligência pronta, memória tenaz e vivacidade da raciocínio (28). Qualquer outro tipo de conduta lhe parecerá um horror. Mas os que não são verdadeiramente filósofos e se contentam com um verniz de opiniões, como acontece com aqueles cujo corpo é bronzeado pelo sol, verificando que tanto há a aprender, tanto a sofrer, reflectindo nesse regime quotidiano o único suficientemente regrado, acham que é difícil, que é para eles impossível; não são mesmo capazes de se exercitar nele, e alguns persuadem-se de que compreenderam o suficiente e não têm vontade de sofrer mais. Eis uma experiência clara e infalível quando se trata de gente habituada ao prazer e incapaz de esforços: não tem que acusar o seu mestre, mas a si própria, já que não pode praticar o que é necessário à filosofia.

O escrito filosófico de Dionísio

 Era assim que eu falava então a Dionísio. No entanto, eu não entrava em pormenores e Dionísio não os pedia: ele fazia o papel do homem que conhece as coisas mais sublimes, que nada mais tema aprender, falando por citações aprendidas de outros. Mesmo mais tarde, ouvi-o dizer, compôs com estes mesmos textos um tratado que deu como ensinamentos seus e não como simples reprodução do que aprendeu. Mas, que é tudo isso? Não sei, outros, não o ignoro, escreveram sobre estas mesmas matérias. Mas quem? Eles próprios não o poderiam dizer. Em todo o caso, é isto que eu posso afirmar, no que respeita a todos quantos escreveram ou escreverão e se pretendem competentes sobre o que constituía objecto das minhas preocupações, por terem sido instruídos por mim ou por outros, ou por o terem descoberto pessoalmente: é impossível, na minha opinião, que tenham compreendido o quer que seja da matéria. Pelo menos minha não existe nem existirá, por certo, nenhuma obra sobre tais assuntos. Efectivamente, não existe qualquer meio de os reduzir a fórmulas, como se fez nas outras ciências, mas é só depois de longamente se ter convivido com estes problemas que, de repente, a verdade brilha na alma, tal como a luz brilha em centelhas e cresce de si própria. Sem dúvida, sei bem que, se fosse necessário expô-los por escrito ou de viva voz, seria eu quem melhor o faria; mas sei também que, se o exposto fosse defeituoso, eu seria atacado por isso, mais que ninguém. Se eu acreditasse ser possível escrevê-Ias e exprimi-ias de uma maneira acessível ao povo, que poderia eu realizar de melhor na minha vida senão manifestar aos homens uma tão salutar doutrina e desvendar totalmente a todos a verdadeira natureza das coisas? Ora, eu não penso que argumentar a esse respeito, como se diz, seja um bem para os homens, excepto para uma ((élite)) a quem apenas algumas indicações são precisas para descobrir por si própria a verdade. Quanto aos outros, viria suscitar-se-lhes um desprezo injusto, o que é inconveniente, ou então uma vã e tola presunção pela sublimidade dos ensinamentos recebidos. Por outro lado, tenho a intenção de me debruçar mais longamente sobre esta questão: talvez algum dos pontos de que trato se torne mais claro quando eu me tiver explicado. Há, na realidade, uma razão séria, que se opõe a tudo o que se escreve em tais matérias, uma razão já muitas vezes alegada, mas que acho melhor repetir ainda.

 A digressão filosófica

 Distinguem-se em todos os seres três elementos que permitem a aquisição da ciência: a própria ciência é o quarto; é necessário colocar em quinto lugar o objecto verdadeiramente real e conhecível. O primeiro elemento é o nome; o segundo, a definição; o terceiro, a imagem [Osório diz: Teoria do Conhecimento]; o quarto, a ciência. Tomemos um exemplo que nos faça compreender o meu pensamento e apliquemo-lo a tudo. Círculo—eis uma coisa expressa, cujo nome é o mesmo que acabo de pronunciar. Em segundo lugar, a sua definição é composta de nomes e verbos: o que tem as extremidades a uma distância perfeitamente igual do centro. Tal é a definição do que se chama redondo, circunferência, círculo. Em terceiro lugar o desenho que se traça e que se apaga, a forma que se molda no torno e que se acaba. Mas o círculo em si, como qual se relacionam todas estas representações, não prova nada de semelhante, pois é outra coisa completamente diversa. Em quarto lugar, a ciência, a inteligência, a verdadeira opinião, relativas a estes objectos, constituem uma classe única e não residem nem em sons pronunciados, nem em figuras materiais, mas sim nas almas. É evidente que se distinguem, quer do círculo real, quer dos três modos que referi. Destes elementos é a inteligência que, por afinidade e semelhança, mais se aproxima do quinto elemento; os outros afastam-se mais. Far-se-iam as mesmas distinções relativamente às figuras, direitas ou circulares, assim como relativamente às cores, ao bom, ao belo, ao justo, a qualquer corpo construido ou natural, ao fogo, à água e a todas as coisas semelhantes, a toda a espécie de seres vivos, às qualidades da alma, às acções e paixões de toda a espécie (29). Se não se chega, de uma maneira ou de outra, a compreender as quatro representações destes objectos, nunca se chegará a obter uma perfeita ciência do quinto elemento. Por outro lado, tudo isto exprime tanto a qualidade como o ser de cada coisa, através dos fracos auxiliares que são as palavras; também, nenhum Homem razoável se arriscará a confiar os seus pensamentos a este veículo, especialmente quando ele é tão rígido como o são os caracteres escritos. Aí está ainda uma coisa que é necessário compreender. Todo o círculo concreto, desenhado ou torneado está repleto do elemento contrário ao quinto: confina, efectivamente, em todas as suas partes com a linha direita, mas o círculo em si não contém nada do seu contrário. O nome, afirmamos nós, não tem qualquer fixidez. Quem pode impedir que se chame direito ao que nós chamamos circular ou circular ao que chamamos direito? O valor significativo não será menos fixo mesmo que se faça esta transformação e se modifique o nome. Diremos o mesmo da definição, já que é composta de nomes e verbos: nada tem de suficientemente sólido. Tem-se mil razões para provar a obscuridade destes quatro elementos. A principal é aquela a que nos referimos mais acima: dos dois princípios a essência e a qualidade, não é a qualidade, mas a essência que a alma procura conhecer. Cada um dos quatro modos dão o que ela não procura; tanto nos raciocínios como nos factos, sendo a expressão e a manifestação que eles nos dão sempre facilmente refutadas pelos sentidos, o que, por assim dizer, coloca todo o homem num ((impasse)) e o enche de incerteza. Também, quando devido à nossa má educação nos falta treino na procura da verdade, ou quando a primeira imagem vinda nos é suficiente, podemos apesar disso interrogar e responder sem cairmos no ridículo perante os outros desde que estejamos em estado de avançar a todo o custo ou de refutar estes quatro modos de expressão. Mas, quando é preciso responder pelo quinto elemento e explicá-lo, qualquer um vindo daqueles que sabem refutar tem vantagens e faz àquele que explica, quer ele escreva, fale ou responda, dar a impressão, à maior parte dos seus auditores, de nada saber daquilo em que se esforça por escrever ou dizer: ignora-se por vezes, com efeito, que o que é refutado é menos a alma do escritor ou do orador que a natureza de cada um dos quatro graus de conhecimento, essencialmente defeituosos. Mas à força de os manejar a todos, subindo e descendo de um a outro, chega-se com dificuldade a criar a ciência, quando o objecto e o espírito são ambos de boa qualidade (30). Se as disposições naturais, pelo contrário, não são boas — e, na maior parte, é esse o estado da alma em face do conhecimento, ou daquilo a que se chama costumes —, se tudo isso fosse corrompido nem com a vista do próprio Linceu (31) se poderia ver. Numa palavra, quem não tem nenhuma afinidade com o objecto não obterá visão, nem graças à sua rapidez de raciocínio, nem graças à sua memória, porque nunca acharão raiz numa natureza desconhecida. Do mesmo modo, quer se trate daqueles que não têm tendência para a justiça e para o belo e não se harmonizam com estas virtudes — por mais dotados que possam ser, aliás, para aprender e fixar —, ou daqueles que, possuindo o parentesco da alma, são resistentes à ciência e desprovidos de memória, nem um de entre eles aprenderá jamais toda a verdade que é possível saber sobre a virtude e o vício. É necessário, com efeito, aprender os dois ao mesmo tempo, tanto o falso como o verdadeiro de toda a essência, à custa de muito trabalho e de tempo, como eu dizia ao princípio. Só quando fizermos chocar uns com os outros, nomes, definição, percepções da vista e impressões dos sentidos, quando se discutir em discussões atentas, onde a inveja não dite nem as perguntas nem as respostas, é que, sobre o objecto estudado, vem incidir a luz da sabedoria e da inteligência com toda a intensidade que podem suportar as forças humanas. É por isso que todo o homem sério evita tratar por escrito questões sérias e abandonar assim os seus pensamentos à cobiça e à estupidez da multidão. Deve tirar-se daqui esta simples conclusão: quando virmos uma composição escrita, ou por um legislador sobre as leis, ou por qualquer outra pessoa sobre não importa que assunto, diremos que o autor não levou isso bem a sério, se ele próprio o é, e que o seu pensamento continua encerrado na parte que lhe é mais preciosa. Que se realmente ele tivesse confiado as suas reflexões e caracteres, como coisas de uma grande importância, ((seria então, de certeza, que)) não os deuses, mas os homens ((lhe tinham feito perder o JUIZO)) (32).

Quem tenha seguido esta exposição e es

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