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O atoleiro epistêmico II

Rubi Rodrigues - 09/06/2022

Atoleiro Epistêmico II

O Boletim ANPOF, de 2 de fevereiro de 2021, traz instigante artigo do Prof. Dr. Waldomiro J. Silva Filho (UFBA), intitulado Atoleiro Epistêmico, o qual denuncia grave risco social em gestação, representado pelo rompimento dos laços comunitários de confiança epistêmica que viabilizam o convívio social. Não há como discordar do professor quanto à gravidade da questão. Também comungo da sua avaliação de estarmos vivendo período singular da história, que combina trágica pandemia sanitária, mudanças relevantes de orientação política – a nível planetário – e crise de confiança nas informações públicas, configurando verdadeira pandemia de desinformação.

Tenho respeito e grande apreço pela Academia e, embora não labute no ensino, tenho grandes amigos que dedicam suas vidas ao magistério. Essa posição externa à Academia permitiu-me perceber, no modo de o professor colocar o problema, um outro problema que reputo tão grave quanto aquele denunciado e que, igualmente, compromete o diálogo e o futuro. O professor apresentou os fatos – político e epistêmico – nos seguintes termos:

 

(a)    “a ascensão ao poder de políticos e partidos de extrema-direita pelos meios legítimos do voto popular [...]. Esses agentes políticos arrastam consigo uma pauta xenófoba, conservadora nos costumes, ultraliberal nas relações econômicas, anticientificista, com declarados ataques aos intelectuais, artistas e jornalistas [...];”

(b)    “a produção em escala industrial de notícias falsas com o objetivo de fomentar e sustentar a pauta extremista. Essa produção de mentiras [...] atacam a credibilidade epistêmica da ciência, da universidade, do jornalismo e [...]”.

 

Adiante, no texto, o professor exemplifica o fato político “com as eleições estadunidense (2016) e brasileira (2018) e com o Brexit (2016)”, avaliando essas situações como resultado de teses de pós-verdade: “parece que pessoas passaram a nutrir um declarado descaso com a verdade e com o movimento da realidade”.

Tenho domínio suficiente de teoria do conhecimento para saber que essas formulações se amparam em referencial interpretativo que as justifica e que não adianta contrapor leitura divergente, amparada em referencial distinto. Para que a discussão seja útil, impõe-se questionar os próprios pressupostos. Em sentido geral, o professor Waldomiro assume posição progressista e critica posições conservadoras. Em termos epistemológicos, desvendar os pressupostos que fundamentam cada uma dessas posições exigiria a caracterização lógica desses modos de pensar e revelar os seus compromissos estruturais, para, somente então, à vista das suas possibilidades e dos seus limites inferenciais, avaliar em que medida as conclusões patrocinadas convergem com a realidade – naturalmente, caso a lógica seja admitida como lei reguladora do pensamento. Sem amparo lógico e epistemológico, o cotejo das perspectivas, baseado apenas nas interpretações patrocinadas, tende a ser inútil. Faço essa observação para registrar minha ciência de que discussão consequente da questão exigiria explicitar os pressupostos que amparam cada perspectiva, que, no meu caso, envolve cosmovisão e teoria do conhecimento, formais.

Não sendo cabível, nestes escritos, um preâmbulo tão vasto, o que resta fazer é mapear o problema, esclarecendo como a perspectiva conservadora contempla as principais questões apontadas, na expectativa de, à luz das leituras que se contrapõem, poder olhar a questão de plano mais abrangente. Tentemos expressar a visão conservadora.

a)       Extrema-direita – “a ascensão ao poder de políticos e partidos de extrema-direita” – No Brasil, tivemos 20 anos de governos de orientação esquerda, praticamente atuando sem oposição e com a população silenciada pela técnica do politicamente correto. Os embates ficaram restritos ao parlamento e aos bastidores do poder, não voltados à obstrução do governo, mas a interesses outros revelados, em parte, pela operação Lava-Jato. As pautas da esquerda avançaram livremente no período e começaram a incomodar, na medida em que passaram a atacar a constituição familiar e a liberdade religiosa, além de tentarem impor a toda a sociedade degradação de costumes, valores e licenciosidades, cultivados em segmentos sociais restritos. O volume do saque aos cofres do Estado – associado, exemplarmente, à defesa do incesto e a tentativas de sexualização precoce das crianças – ensejou a reação da população conservadora, que se manifestou, ordeiramente, em março de 2013, e descobriu-se majoritária em 2018.

A manifestação de 2013 envolveu de quatro a seis milhões de pessoas, que foram às praças de, aproximadamente, 400 cidades brasileiras, em domingo ensolarado, com a pródiga façanha de não ter se registrado um único incidente, enquanto outras manifestações, em datas próximas, resultaram em depredação de patrimônios, pela ação de profissionais treinados em distúrbios. A população conservadora sabe que é com o dinheiro dos seus impostos que os equipamentos públicos são comprados e sabe, também, o quanto custa produzir, de sorte que tende a preservá-los ao invés de destruí-los. De mais a mais, sendo a população que trabalha e produz, não dispõe de tempo nem de motivo para treinamento de guerrilha no exterior, de modo que tentar rotulá-la de extremista de direita exige acrobacia mental. Se existe algo que tipifica o movimento conservador brasileiro, não é disposição de transgredir as normas democráticas, mas, sim, plena desorganização política. Isso, sem desconhecer que existem malucos em toda parte. O próprio presidente foi eleito por um partido nanico, assumido de última hora. Nessas condições, quando se interpreta que o governo brasileiro, embora conquistado de modo legítimo na disputa democrática, estaria dominado por radicais de direita – partidos e políticos –, podemos estar diante de uma miragem ou estar diante de algum entrave, o qual nos impede ver, com clareza, a realidade. Essa dificuldade de enxergar pode constituir problema sério, uma vez que à Academia cabe produzir o conhecimento capaz de bem orientar a sociedade. Um diagnóstico equivocado não pode produzir orientação correta.

b)      Pauta extremista – “pauta xenófoba, conservadora [...], ultraliberal [...], anticientificista, com ataques aos intelectuais [...]” – O regime político brasileiro é, formalmente, democrático, significando isso que a população institui governo pela maioria de votos. Em 2018, a população brasileira, assustada com os rumos socialistas, resolveu que o país deveria ser dirigido com respeito aos valores conservadores professados pela maioria da população. Essa determinação, democraticamente legítima, tem sido obedecida pelo governo. Nesse sentido, alguns setores da sociedade, bem identificados pelo professor – intelectuais, artistas e jornalistas –, parecem encontrar dificuldades de se ajustar à nova orientação, têm criado obstáculos à ação governamental e, em razão disso, têm recebido críticas da sociedade conservadora, que, embora menos letrada, não custa lembrar, resulta ser majoritária.

A própria Academia foi criada pela população, na expectativa de receber em troca conhecimentos úteis que facilitem a vida de todos e favoreçam o processo civilizatório. Os próprios recursos de manutenção da Academia derivam de impostos recolhidos em razão do trabalho da população, como visto, majoritariamente conservadora. Nessas condições, dado que a maioria da população sinalizou que não deseja mais saber das soluções socialistas que lhe foram apresentadas nos últimos 20 anos, o que cabe à Academia fazer? Certamente, atacar a mão que alimenta não se afigura promissor.

Além disso, acusar a população mais miscigenada e multicultural do planeta de xenófoba, parece contraditório. A não ser que se classifique como xenofobia a recusa da população em submeter-se a modos de viver que são privativos, embora caros, de minorias. Não parece que a maioria conservadora da população se importe com trejeitos de minorias. O que ela não admite, é que isso seja imposto a todos ou que esses trejeitos sejam usados para agredir os que não compactuam com eles.

Na mesma categoria, inscreve-se a crítica dirigida à ciência e ao uso do argumento de autoridade “de especialistas” de viés ideológico seletivo, que ganham espaço na mídia. A doença que grassa é nova e desconhecida, e os cientistas têm concepções não uniformes sobre como enfrentá-la. Apesar disso, apenas alguns entendimentos são veiculados na mídia, e o contraditório não se oportuniza. Curiosamente, vemos a mídia difundir, intencionalmente, pânico e defender blecaute total, desconsiderando a realidade social de quem depende do trabalho diário para subsistir e minimizando os efeitos sobre a economia e sobre os empregos. O curioso, aqui, é a sintonia universal intuitiva entre a mídia e a Academia, no descaso da desordem econômica resultante, justamente quando governos conservadores conquistaram o poder. Veja-se que não houve qualquer combinação entre os intelectuais do mundo, a reação e a sintonia são intuitivas e, talvez, sequer percebidas por todos. Essa reação sintonizada afigura-se, claramente, instintiva. Parece que a intelectualidade do planeta, formada à luz de valores socialistas e sendo operadora exímia da lógica dialética, esteja prisioneira dessa lógica e não consiga superar essa condição monológica – possivelmente, por seus membros estarem convictos de que esse seja o padrão inferencial superior da espécie. O fato de a Pós-Modernidade ser regida pela lógica dialética e constituir-se no quarto grande período civilizatório da humanidade confirma ser esse o estado atual da arte e, nesse sentido, revela-se superior aos precedentes. Esse fato não autoriza, porém, a considerar que chegamos ao final da história e que não sejam possíveis lógica, modos de pensar e civilização superiores. Ao contrário, a recusa e a crítica ao socialismo pelas pessoas mais simples podem estar indicando, também intuitivamente, ser chegada a hora de superar a Pós-Modernidade e inventar novo arranjo social.

Como fazê-lo se a Academia, que é a ponta de lança racional da sociedade, em vez de auscultar o futuro, estiver empenhada em reestabelecer o passado?

         

Há, ainda, outros elementos que poderiam ser considerados, mas penso que as razões arroladas sejam suficientes para tipificar a perspectiva. Dadas as razões epistemológicas apresentadas no preâmbulo, essas considerações não visam a refutar entendimentos e, menos ainda, a contrapor ou a convencer. Os contrapontos apresentados servem unicamente para que se possa avaliar se a interpretação divergente da interpretação progressista também contempla alguma parcela de verdade ou, ao menos, também comporta razoabilidade. Caso a comunidade acadêmica possa admitir que as ponderações divergentes apresentadas sejam também razoáveis, restam evidenciados fundamentos epistemológicos do atoleiro identificado pelo professor Waldomiro e fica devidamente destacada a relevância da sua contribuição: ele não apenas denuncia impasse epistemológico grave como também eleva o problema ao plano epistêmico e coloca a questão na única instância na qual uma solução para o impasse pode ser gerada. Gerada como? Pela formalização de lógica e de modo de pensar que vislumbrem a totalidade das coisas e não apenas as suas dimensões – histórica e/ou funcional – privilegiadas nas perspectivas progressista e conservadora.

Trata-se da conquista de razão mais ampla e reveladora, capaz de vislumbrar o todo dos fenômenos e das coisas, única forma de fornecer a quem esteja seduzido por uma parte elementos de convicção que lhe permita superar a limitação. Ademais, ainda que a nossa ciência atual seja analítica e voltada para as partes, já sabemos que o todo transcende e se revela maior do que a soma das partes, instaurando realidade superior. Sintomaticamente, constata-se que, na natureza, não se encontra isolado algo que corresponda ao conceito analítico de parte, sendo ela constituída exclusivamente de totalidades unitárias, complexas, feitas de partes. Logo, focar totalidades representa também libertar os olhos de uma ilusão – partes – e vislumbrar o que realmente existe – todos –, o que, como se sabe, no plano epistêmico, configura-se fundamental.

Em outro sentido, tratando-se de embate que contrapõe população medianamente letrada e sua elite intelectual, a superação de posições intuitivamente defendidas somente pode ser alcançada pela devida racionalização do território, tarefa da qual apenas a Academia pode incumbir-se.

 

A cosmovisão que nos fundamenta pode ser acessada pelo link: https://segundasfilosoficas.org/sem-categoria/cosmovisao-metafisica/.

A Teoria do Conhecimento que nos ampara pode ser acessada pelo link: https://segundasfilosoficas.org/sem-categoria/teoria-do-conhecimento-ii/.

O desafio que se oferece à Academia tem precedentes no link: https://segundasfilosoficas.org/sem-categoria/o-fim-de-uma-era-um-desafio-a-academia/.

 

Brasília, março de 2021.

Rubi Rodrigues

 

Formado em Economia, pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), e pós-graduado em Fenomenologia, pela Universidade de Brasília (UnB). Escritor, coordenador do grupo de estudos e do site Segundas Filosóficas e ex-presidente da Academia Maçônica de Letras do Distrito Federal.

 

CORRESPONDÊNCIA COM A ANPOF

 

Em 23/03/2021 Encaminhei o texto acima para a comissão de avaliação da ANPOF visando a sua publicação no Fórum de Debates do Boletim ANPOF.

Em 12/04/2021 a Diretoria de Comunicação me mandou a seguinte mensagem: “Prezado, O texto recorre a fatos inexistente e, por essa razão, não será publicado. Att, Diretoria de Comunicação da Anpof

Em 16/04/2021 me dirigi à Diretoria da Anpof nos seguintes termos: À Diretoria da ANPOF

Saudações!

No comunicado da ANPOF de 13/02/2021, tomei conhecimento das diretrizes para a Coluna Anpof que concita ao debate de problemas atuais. Tocado pelo convite, em 23/03 encaminhei a contribuição anexa, que foi recusada pela Diretoria de Comunicação, nos seguintes termos: “O texto recorre a fatos inexistente e, por essa razão, não será publicado”.

Os termos da recusa, sem solicitar a correção de eventual equívoco, deixam evidente que o órgão avaliador, compreensivelmente centrado em questões formais, não avaliou o conteúdo estratégico do texto, que além de concordar com a existência de um impasse epistemológico grave, inibindo o diálogo no Brasil e a própria ação governamental, não fica no diagnóstico, mas, oferece uma hipótese formal de enfrentamento do problema.

Nessas circunstâncias, este encaminhamento ao colegiado superior da ANPOF, não visa, em absoluto, pleitear revisão da decisão. Visa apenas solicitar que me seja indicado quais os “fatos inexistentes” identificados, de sorte que eu possa corrigir meus erros, questionar minhas fontes de informação ou, enfim, aproximar-me mais da verdade. Não tenho pretensão de não cometer erros, mas tenho obstinação na busca da verdade e penso que entre as melhores potencialidades dos debates, destacam-se, justamente, corrigir erros interpretativos e facultar que o entendimento se aprimore.

Nestes termos, apreciaria que essa Diretoria autorizasse que me fossem indicados os “fatos inexistentes” que ampararam aquela decisão, evitando que eu cometa mais um erro grave, entendendo que o convite ao debate da Coluna, não se estende a olhares divergentes.

Cordialmente Rubi Rodrigues

Esta mensagem não mereceu resposta até 30/09/2021 o que me autoriza a confirmar a conclusão com a qual encerro a mensagem. Na verdade, apenas queria confirmar que a recusa de publicação era sancionada pela Diretoria superior da Anpof e assim evidenciar a dificuldade de diálogo hoje presente nas instâncias superiores da filosofia acadêmica brasileira. 

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