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Uma expedição arqueológica ao futuro

Rubi Rodrigues - 28/06/1999

IGUALDADE, DIFERENÇA E POTENCIALIDADES PRESENTES NAS PERS-PECTIVAS ADOTADAS PELOS PROFESSORES HÉLIO JAGUARIBE E LUIZ SAMPAIO NO SEMINÁRIO PROMOVIDO EM BRASÍLIA PELO LABORATÓ-RIO DE ESTUDOS DO FUTURO DA UnB, NA TARDE DE 16/06/1999.

 

O desafio comum: Desenvolver uma abordagem que permita identificar alterna-tivas de futuro para as sociedades humana e brasileira.

  O encontro foi extremamente rico em conteúdo conceitual e em argumentos interpretativos. A justaposição de um lógico e de um sociólogo na consideração do mesmo problema criou uma oportunidade conceitual rara, que recomenda a sensibilidade estratégica dos organizadores.

 

 Enquanto laboratório de conhecimentos, quer parecer-nos que considerar os referenciais adotados pelos dois conferencistas, configura-se academicamente mais importante do que focalizar as eventuais leituras de realidade que cada um realizou.

 

 O professor Jaguaribe ao esclarecer os pressupostos adotados na sua abordagem, estabelece alicerce sobre fatores estruturais (reais e ideais) e fatores conjunturais, no caso, o acaso, decorrente da liberdade humana. Com isso fixa uma trilogia básica virtualmente suficiente para sustentar o discurso. As imposições gerais da contingência, seriam os fatores reais, o modo de pen-sar predominante na elite, os fatores ideais, e o acaso representaria o terceiro elemento, de caráter conjuntural.

 

 O professor não se contenta, porém, com essa trilogia e vai buscar complemento em mais dois pressupostos: 1. dada a forma aleatória segundo a qual se combinam os fatores conjunturais, somente as tendências estruturais são previsíveis, e, 2. sendo inevitáveis mudanças paramétricas na evolução dos fatores estruturais, impõe-se limites ao horizonte temporal previsível.

 

 Em vista do caráter problemático das mudanças paramétricas na evolução dos fatores estruturais, esse modelo se assenta predominantemente no acaso. Consciente disso o professor esclarece cuidadosamente que o modelo só se aplica a grandes números, só se aplica às chamadas sociedades de massa. Com isso fica esclarecido que esse modelo lança raízes em um conceito de sistema caótico, onde uma diversidade vigora aleatoriamente, sem a presença de qualquer determinante universal.

 

 Em última instância, portanto, a perspectiva adotada pelo profes-sor Jaguaribe, fundamenta-se no grande número, na quantidade massiva onde a influência da unidade pode ser desprezada. Não em virtude de uma opção ou gosto pessoal, diga-se de passagem. Isso ao menos é o que se depreende da sua observação de que o caminho da relativização absoluta decorria da ausência de qualquer critério de validade universal. Já que o disponível era um limão, a saída foi fazer uma limonada.

 

 O professor Sampaio, por outro lado, ao propor um esquema de padrões lógicos diferenciados para interpretar a história da humanidade, adota como pressuposto que o discernimento humano resulta de operações lógicas e que o processo evolutivo da humanidade segue de par com o domínio formal de padrões lógicos crescentemente complexos, que possibilitam modos de pensar e interpretar cada vez mais poderosos.

 

 Nesse modelo a história humana essencial é a história da evolu-ção do discernimento. Por isso cada estágio de discernimento traz logo consigo a sombra ameaçadora do estágio seguinte que vai superá-lo. Esse estágio se-guinte obviamente não é claramente visível porque pressupõe uma lógica distinta da vigente no estágio atual. Dado, porém, que algo já se insinua, a lógica atual cria o que o professor Sampaio chama de fingimento do novo, fato magnificamente demonstrado por W. Benjamin nas famosas Passagens de Paris.

 

 Em ultima instância, porém, a perspectiva do professor Sampaio propõe a lógica como sendo o critério de validade universal cuja carência o professor Jaguaribe denuncia. Ao seguir esse caminho de universalidade, o modelo lógico revela-se simultaneamente orientado para a unidade.

 

 Com isso se compreende porque as duas perspectivas são tão distintas: uma se baseia claramente na diversidade e a outra francamente na unidade, ainda que, no caso, seja apenas uma unidade determinativa. Essa distância ou diferença quantitativa nos oferece alguma pista? Vejamos.

 

 O professor Jaguaribe caracteriza a sociedade atual como hiper-relativista, condição manifesta objetivamente como consumismo intransitivo e subjetivamente como fragmentação conceitual. É a vigência da diversidade e da fragmentação ensejando, coerentemente, um modelo explicativo do caótico. No âmbito da fragmentação efetivamente não vemos alternativa ao modelo de previsão proposto.

 

 A visão de futuro provável, porém, tanto no modo de Pax Ameri-cana como no de Pax Universalis, aponta para uma unidade, ainda que, no pri-meiro caso, seja uma unidade bi-polar. A tendência para a unidade é clara e se justifica plenamente até mesmo porque a unidade representa o contraponto da fragmentação que hoje nos angustia.

 

 Nesse sentido o modelo lógico do professor Sampaio poderia ser o futuro, mas, qual é o futuro que o modelo lógico descortina? Também uma unidade, uma cultura nova, caracterizada por uma lógica qüinquitária, que salvo, engano, entende como sendo uma dialética ou hiperdialética da dupla diferença.

 

 Nesse ponto o modelo lógico apresenta a sua maior dificuldade, porque a possibilidade de prever o que o futuro nos reserva, pressupõe o domí-nio da lógica emergente que vai vigorar nesse futuro1. Dado que desconhece-mos como essa lógica opera, somente as determinações estruturais do próprio modelo é que podem indicar-nos a sua feição.

 

  

 (1) Observe-se que a lógica assim compreendida constitui referencial cognitivo.

No seu estágio atual, o modelo apresentado indica como futuro uma lógica qüinquitária, que parece visar um tipo de totalidade determinada dicotomicamente ao se colocar no horizonte cumulativo das lógicas precedentes. Por isso o futuro do modelo lógico é um futuro dialeticamente determinado. Ora, a hipótese de uma Pax Americana, também é construída dialeticamente ao visar, no logo prazo, uma bi-polaridade. Nesse sentido, apesar das diferenças, ambas as perspectivas lançam mãos da dialética para construir o futuro.

 A questão resultante é: não estaremos confundindo a perspectiva dialética com a qual se vislumbra a temporalidade e se constrói uma história, com o padrão lógico que esperamos em futuro próximo presida a razão predo-miante? O fato da humanidade já ter conquistado uma perspectiva histórica não indica que o momento dessa lógica já pertence ao passado?

 

 Se a coincidência da dialética2 nos leva a essas questões, uma outra coincidência estrutural; o fato de ambas as perspectivas buscarem a unidade ou possuírem a unidade como horizonte, enseja outro questionamento.

 

 O conceito de unidade envolve certamente o conceito de limite e também o conceito de totalidade. Temos então, unidade, limite e totalidade como características essenciais do mesmo. Já que em qualquer das perspectivas a visão de futuro é turva, será que o percebido como futuro provável, em lugar de unidade, não seria a totalidade e, portanto, o estágio se-guinte preconizado pelo modelo lógico, não estaria a indicar o momento de hegemonia de uma lógica da totalidade?

 

 Quando o professor Jaguaribe afirma que o processo de globali-zação foi expontâneo, essa espontaneidade não estaria indicando o mesmo despertar intuitivo do estágio lógico superior de que nos fala Sampaio? Visto de outro modo, a globalização econômica não seria o fingimento da razão cien-tífica pressentindo a emergência de uma lógica da totalidade? Quando o professor Jaguaribe, ao especificar a Pax Universalis, fala em “imperativo da racionalidade eqüitativa” não estaria se aproximando de um pensamento ou padrão lógico de caráter complementar e não excludente, portanto não dicotômico, nem dialético, nos moldes da lógica que “intuitivamente” fundamenta o sedutor discurso ecológico? Por falar em Intuição, o nosso espírito não clama por uma complementaridade com o outro, que tenha superado esse estágio primário da competição?

 

 A globalização que presenciamos certamente aponta para a totalidade planetária. Admitindo-se a razoável tese sampaiana de que a lógica preside o modo de pensar, temos de convir que essa totalidade vai demandar um modo de pensar correspondente, até aqui não exigido. Tal pensamento terá de ter, necessariamente, padrão complementar, isto é, não poderá ser dicotômico, pela simples razão de não se poder jogar excluídos para fora do mundo. Com isso se inscreve o desafio e a necessidade de se especificar a lógica dessa complementaridade, sem o concurso da dicotomia “tese-antítese”.

 

 (2) Ambos estão de acordo em pensar a história usando uma lógica dialética. Estariam também de acordo em admitir a lógica como recurso normativo condicionante de toda intelecção?

De toda forma, os conceitos expressos ou implícitos nos dois pronunciamentos, tomados na perspectiva de se pensar seriamente o futuro, exigem que concentremos a nossa atenção na questão metodológica. Em última instância estamos buscando um referencial que nos permita prever e se possível, projetar um futuro conveniente.

 Como ninguém espera que seja viável qualquer dialogo à margem da racionalidade e da lógica, parece perfeitamente razoável a hipótese de que a ação humana dependa do discernimento humano e que este seja determinado e condicionado pelo poder normativo da lógica. Com isso a idéia de formalizar um referencial lógico capaz de tornar metódico o uso da razão, se insinua como uma hipótese tentadora.

 

 Nesse sentido o modelo lógico pode estar indicando um caminho que merece ser explorado. O modelo parece indicar, por exemplo, que o salto perceptivo entre dois estágios, somente pode dar-se por meio de uma intuição, nunca por meio de uma dedução ou inferência baseada na lógica anterior. Nesse caso oportunizar a discussão, nos moldes do que faz o laboratório de estudos do futuro, se configura fundamental. Por outro lado, o caráter intuitivo dessa revelação, estaria a exigir dos cientistas prestar atenção ao que dizem os poetas e sensitivos, por mais incômodo que isso possa parecer.

 

 Tecnicamente muitas questões poderiam ser postas ao modelo. Por exemplo. Cada salto perceptivo significa a presença de uma descon-tinuidade? Em que medida cada estágio influencia o seguinte? A lógica de um estágio preserva alguma coisa da lógica anterior? Quais são exatamente os padrões de pensamento potencializados em cada estágio? A que parcela da realidade se aplica cada lógica? Esse conjunto de lógicas distintas compõe uma unidade? As lógicas assim tomadas teriam apenas conotação subjetiva ou representariam também leis objetivas da natureza? Etc. etc.

 

 Depois da lição kantiana sobre a idealidade dos fenômenos, não resta mais dúvida de que as intelecções humanas são meras interpretações culturais. Dado que toda interpretação depende do referencial cognitivo movimentado, parece que a idéia de compartilhar uma visão de futuro pressupõe um acordo prévio sobre o referencial que a produz.

 

 

 

Brasília, 28/06/1999

Rubi Germano Rodrigues (55)

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