Cap. 3 – O paradigma da Civilização Ocidental
Rodrigues, Rubi - 01/08/2011
CAPÍTULO 3 – O PARADIGMA DA CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL
Leitura paradigmática do modelo ocidental de civilização com destaque aos problemas estruturais que comprometem o futuro da humanidade. – Objetivo: demonstrar que a atual civilização ocidental constitui fruto de um paradigma formal claramente identificado.
Reduzir o padrão civilizatório vigente hoje, no planeta, ao que se convencionou chamar de civilização ocidental, implica certamente alguma simplificação, mas nos parece que as distorções provocadas por essa opção podem ser desprezadas, tanto em razão da penetração universal de alguns de seus valores centrais, como, por exemplo, o predomínio e a priorização da variável econômica, quanto em virtude da própria influência universal de um modo típico de fazer ciência, francamente globalizado, impactando de modo importante a vida e o destino de todas as nações. Assim, embora admitamos que a adaptação deste estudo a culturas orientais localizadas possa exigir ajustes, pensamos que o nosso foco na civilização ocidental se justifica por contemplar o padrão predominante.
Uma vez focada a civilização ocidental, basta dar uma passada de olhos na sua história para constatar que o padrão civilizatório atualmente vivenciado não estava presente quinhentos anos atrás. Da mesma forma, percebemos com facilidade que a cultura medieval que se consolida na segunda metade do primeiro milênio distingue-se, com igual intensidade, da cultura clássica antiga que experimentou seu apogeu à época dos grandes impérios persa, grego e romano. De um modo geral, a divisão oficial da história adotada nos manuais já registra essas diferenças, e os estudos disponíveis sobre o Iluminismo tanto elucidam, com riqueza de detalhes, como se deu a transição da Idade Média para a Idade Moderna quanto catalogam as ideias e as produções culturais que emergiram nesse período e deram corpo e alma ao mundo científico de nosso tempo.
O estudo do Iluminismo afigura-se, portanto, importante para nós, que estamos interessados em identificar os pressupostos, o paradigma ou o espírito da Idade Contemporânea. Nesse sentido, embora exista uma vasta literatura disponível, a obra Iluminismo radical, de Jonathan I. Israel, editada no Brasil, em 2009, pela Editora Madras, propicia um acesso econômico bem fundado e, para os nossos propósitos, suficiente ao período.
Esse autor não apenas vasculhou as principais bibliotecas públicas da Europa, mas também teve acesso a importantes bibliotecas universitárias e particulares e, com isso, conseguiu trazer à luz correspondências trocadas na época entre editores, autores, eruditos, livreiros, mercadores e gestores de bibliotecas, conseguindo, dessa maneira, retratar, de forma admirável, o clima de desconfiança, conspiração e perseguição que emoldurou aquela época.
A par disso, merece destaque o fato de a obra fugir da perspectiva que, normalmente, tem sido adotada na consideração desse movimento cultural. Como a modernidade, em termos culturais, caracteriza-se pela hegemonia absoluta do pensamento científico, costuma-se tratar e destacar, no Iluminismo, os autores e as proposições que foram precursores do pensamento científico moderno, com destaque para Galileu, Copérnico, Newton, Descartes, Locke, Voltaire, Rousseau e todos os pensadores cujas ideias deram alma à modernidade bem como lhe conferiram as nuances que conhecemos. Ao contrário disso, na obra Iluminismo radical, o autor destaca aquelas produções e aqueles pensadores que atacaram e conseguiram destruir os alicerces conceituais que sustentavam o modo medieval de conduzir a vida e a sociedade. Por essa razão, ele focaliza os cem anos, que vão de 1650 até 1750, embora o movimento iluminista costume ser localizado no século XVIII, que corresponde ao seu apogeu. Os elementos corrosivos que começaram a debilitar as colunas de sustentação da sociedade medieval, porém, já tinham sido criados e lançados no século XVII. Seu mentor principal, o erudito dos Países Baixos, Bento Espinosa (1632-1677), foi quem logrou articular, em um sistema altamente consistente, um conjunto de ideias que não eram novas, já estavam presentes na tradição mística anterior ao cristianismo, e que se mantinham sorrateiras e marginalizadas em escritos, lendas e tradições deístas e naturalistas, transmitidas oralmente pela cultura popular, mas cujo fundo de verdades nunca deixou de impressionar os espíritos mais atentos.
Há, portanto, uma lição importante dessa obra que cabe, aqui, capitalizar. Ela nos mostra que, em se tratando de modelo civilizatório, a superação do espírito de uma época exige duas ações complementares: é preciso definir e criar um novo que se afigure melhor que o vigente, mas é, também, indispensável desacreditar o velho, demonstrando a falsidade, a fraqueza, a defasagem ou a inconsistência dos princípios que o fundamentam. Tanto é necessário construir o novo como é imperativo desconstruir o antigo, algo que Kuhn não identifica como revoluções científicas, porque, nesse caso, o advento de um novo paradigma científico, embora abra um novo espaço de evolução para a ciência, não elimina, necessariamente, a utilidade da ciência anterior que pode, perfeitamente, continuar a ser aplicada em casos específicos, como é o caso da Física de Newton frente à relatividade. Na hipótese de civilizações, ao contrário, a incompatibilidade se revela total, o que, certamente, revela ou prenuncia uma transição mais traumática.
Se o percurso histórico nos remete ao Iluminismo, o exame das obras e das ideias essenciais então produzidas, quando confrontadas com as crenças e os valores essenciais que compõem o espírito moderno, leva-nos, claramente, a René Descartes.
A busca retrospectiva de um paradigma civilizatório envolverá sempre mergulho ontológico no espírito de uma época, tendo como meta identificar a essencialidade primeira capaz de produzir os traços mais fortes do padrão civilizatório em questão. O ideal, em tese, seria que desse esforço resultasse um conceito geratriz único, de sorte que o processo de síntese fosse irredutível. No presente caso da civilização ocidental, embora tenhamos chegado a um autor único, logramos identificar não um, mas dois conceitos geratrizes complementares, que se revelam igualmente essenciais na constituição do espírito da modernidade ocidental: o cogito e o sistema de coordenadas, ambos cartesianos.
Independentemente das intenções dos autores dessa época, tão difícil de avaliar em razão da influência repressora da Inquisição, parece seguro afirmar que Descartes se escandalizava com a pobreza metodológica da Escolástica e almejava trazer, para o âmbito da Metafísica e do confronto de ideias em geral, a precisão lógica e conceitual que constatava presente na Geometria. Já a sinceridade da sua tentativa de provar, racionalmente, a existência de Deus, embora central nas meditações, fica dependente de uma hipótese de que ele, até então, não tivesse compreendido as implicações mediatas de suas propostas, o que nos parece ser, se não improvável, ao menos, curioso.
De qualquer forma, como acontece com inovadores importantes, a posteridade acolheu algumas sugestões e descartou outras, mas o que acolheu foi decisivo na redefinição do modelo civilizatório.
Quando surgiu, o sistema de coordenadas cartesianas podia parecer apenas um artifício engenhoso que permitia organizar o âmbito do espaço, de modo a permitir a sua ocupação racional e planejada, e, nesse sentido, representava apenas aperfeiçoamento das ferramentas geométricas que já estavam disponíveis desde a antiguidade. Em termos psicológicos, porém, a possibilidade de estender as coordenadas ao infinito permite igualmente estender a compreensão humana ao espaço cósmico e, assim, sancionando a percepção de mundo desde sempre sugerida pelos olhos orgânicos, viabilizar a indicação desse domínio com um modelo formal e, dessa forma, com naturalidade, derivar para a captura do Universo, no âmbito de um espaço uniforme e regular. Isaac Newton (1642-1727), que tinha oito anos quando Descartes morreu, capitaliza essa ideia de espaço regular e uniforme – em seus estudos que inauguram a ciência moderna – e gera o corpo de conhecimentos que se convencionou chamar de Física Clássica. Essa nova postura diante do conhecimento, além de capitalizar as preocupações metodológicas de Descartes, com sua dúvida metódica, assimila também as preocupações metodológicas de caráter experimental defendidas por Francis Bacon (1561-1626) e por Galileu Galilei (1564-1642), mas se não lhe damos o mesmo grau de importância é porque essas preocupações se inscrevem no mesmo modelo espacial de universo que ganha formalidade com o sistema de coordenadas de Descartes.
Embora a ideia de modelo de universo pertença a um tipo de ciência, a Cosmologia, que não estava presente na época de Descartes, e embora, ainda hoje, falar em modelo cartesiano de universo possa provocar estranheza, a presença indelével de uma concepção espacial de universo nos alicerces da ciência moderna não pode ser desconsiderada, e o próprio caráter velado dessa presença constitui indicativo de uma atuação discreta e subliminar que verificamos ser própria de pressupostos, referenciais e paradigmas. Apesar de essa presença poder não ser percebida, os seus efeitos na forma de ver e de entender o mundo não podem ser ignorados.
Quando o mundo é limitado ao espaço tridimensional, todo um vasto leque de consequências torna-se inevitável por mera decorrência estrutural, a começar pelo fato de a presença de manifestações existenciais nesse universo ficar também restrita àqueles fenômenos que, igualmente, possuem três dimensões, isto é, ficar limitada à matéria e à materialidade. Dado que os nossos olhos orgânicos e, em geral, todos os sentidos de percepção, limitam-se a perceber o que também possui compleição material, fica configurada situação verdadeiramente hipnótica, na qual os focos da atenção e da percepção humana, capturados pelo paradigma, ficam restritos à materialidade. Como bem nos ensina o Mito da Caverna de Platão, esse homem vai acreditar piamente que a matéria é tudo o que existe, vai apegar-se a bens materiais e dedicar seu principal esforço para o acúmulo de tais bens. Vai desenvolver conhecimento e ciência centrados na composição e nas propriedades da matéria bem como vai desenvolver tecnologia que lhe permita dominar a natureza, visando a satisfazer propósitos patrimoniais e de bem-estar. Assim, também o seu sistema produtivo e a sua indústria terão como objeto a produção de bens materiais, e todo o sistema midiático será capturado por tais interesses industriais e terá como propósito estratégico incutir e exacerbar na população o desejo de consumir. Em tal ambiente, as próprias medidas de aferição de bem-estar coletivo das nações constituem medidas de produção de bens de consumo, e o grau de consumo certamente também é tomado como determinante do grau de felicidade de cada povo ou nação. Obviamente, as questões que a vida coloca a tal homem e a tais populações não se resumem a questões materiais, mas tudo aquilo que não possui exata compleição material vai parecer-lhes estranho, fantasmagórico e causar-lhes desconforto e desconfiança. O resultado é evidente: serão marginalizadas.
Tome-se, por exemplo, o tempo, que, não possuindo compleição material até hoje, não tem conceituação completamente pacificada. O tempo, de modo similar ao espaço, nasce uniforme, constante, universal e infinito com Newton. Ganha critérios de divisão e mensuração, tal como o espaço, mas, no espírito humano, nunca conquista o mesmo status ontológico do espaço e preserva certo grau de mistério, provavelmente, apenas por ser invisível aos olhos orgânicos, embora irrecusável aos olhos da mente.
Somente no início do século XX, Albert Einstein (1879-1955), com a Teoria da Relatividade, confere ao tempo papel central nos estudos de Física, equiparando-o, em importância, às três variáveis cartesianas do espaço: o tempo é o quarto número, afirma Einstein.
Na historiografia da ciência, o advento da relatividade é festejado como quebra do paradigma científico newtoniano, dado que tornava relativos tanto o espaço como o tempo: o que é hoje, em nosso planeta, pode ser ontem, em outro, e amanhã, em um terceiro, dependendo da posição do observador.
A relatividade defende que o mundo não é tridimensional, uma vez que há uma quarta dimensão do tempo. Esse conjunto estabelece uma instância espaço-temporal contínua, na qual espaço e tempo interagem, imprimindo curvatura a essa instância, de sorte que o deslocamento da matéria nesse âmbito, em lugar de se dar em linha reta, dá-se no sentido curvo de menor resistência, o que implica geometrizar a questão gravitacional. A relatividade apresenta muitas outras implicações, mas, aqui, basta registrar que estabelece a velocidade da luz com valor constante e como limite máximo de velocidade admitido nesse contínuo espaço-temporal.
De qualquer forma, ainda que o mundo de Einstein seja um mundo de quatro dimensões e não apenas de três, como é o mundo de Descartes, o fato de essa instância espaço-temporal constituir um contínuo irredutível, em que o tempo pode ser considerado uma dimensão do espaço, assim como o espaço pode ser considerado uma dimensão do tempo, e, ainda, o fato tão ou mais relevante de essa instância assumir feição curva e, portanto, feição geométrica evidenciam que esse mundo relativo continua sendo predominantemente espacial e que, em assim sendo, continua mantido o foco humano nos conteúdos existenciais do espaço, isto é, na matéria. Ou seja, a relatividade pode ter mudado o paradigma da ciência, mas não mudou o paradigma civilizatório. O mundo de Einstein é o mesmo mundo de Descartes.
Quando amadurecem os estudos do interior do átomo, com a descoberta de uma miríade de partículas subatômicas, descortina-se um ambiente quântico enigmático, em que tempo e espaço se desestabilizam, a ação do observador, ostensivamente, altera o resultado observado e o comportamento sincronizado de partículas fisicamente separadas viola o limite da velocidade da luz, tornando necessário criar um conceito de “localidade”, para indicar o âmbito relativista no qual o limite da velocidade da luz é respeitado, e um conceito de “não local”, para indicar uma relação na qual essa limitação não se verifica. Quando, finalmente, é demonstrado que toda a Física Quântica afigura-se não local, fica também demonstrada a presença de um desconfortável paradoxo entre a mecânica quântica e a relatividade espacial, configurando uma das mais importantes pendências atuais da Física, ao lado, naturalmente, da Teoria do Campo Unificado, perseguida por Einstein, com o propósito de englobar todos os fenômenos gravitacionais e eletromagnéticos, em uma única estrutura lógica.
Independentemente das questões pendentes e do fato de a Física Quântica se revelar não local, não estão ainda presentes (e, virtualmente, nunca estarão) elementos suficientes para decretar o fracasso do caráter local do mundo relativista, de sorte que, mesmo para os físicos quânticos, o único universo acessível é esse que aí está e no qual eles produzem a sua ciência: um universo local. Portanto, também, aqui, embora a Física Quântica possa ter mudado o paradigma científico, manteve intocado o paradigma civilizatório com a consequência de o objeto da Física Quântica continuar sendo tridimensional, ainda que em estado ou em forma de onda e de energia.
Nessas condições, quer nos parecer que, apesar de a ciência ter evoluído pela sucessiva troca de paradigmas científicos, a visão de mundo que em toda a modernidade prevalece é a visão cartesiana de um universo contido no espaço. Tanto isso é verdade que, no geral, os cientistas comungam da crença em um princípio de imanência, segundo o qual tudo que se manifesta no mundo decorre de potencialidades imanentes à matéria ou de propriedades já contidas no mundo. Ora, essa crença apenas se justifica em um mundo contido em uma amplitude que também não ultrapassa a amplitude da matéria que contém essa imanência. Isso só se justifica em um universo tridimensional: é imanente justamente porque está contido no tridimensional, não existindo outra instância da qual possa provir. Dado que isso não se altera com a formação clássica, relativista ou quântica dos físicos, concluímos que a concepção básica de mundo utilizada pela Física Quântica continua sendo cartesiana.
A par desse alicerce objetivo patrocinado ou formalizado pelo sistema de coordenadas cartesianas, arrolamos também o cogito, ergo sum de Descartes como sendo o segundo elemento complementar na constituição do paradigma gerador da civilização ocidental.
Deixemos de lado a influência do cogito nos rumos idealistas seguidos pela Filosofia, o que, aqui, em particular, cumpre destacar, é a sua influência na formação psicológica do homem e no seu modo de pensar. O cogito, ao estabelecer a precedência da consciência, coloca o homem como centro interpretativo do universo e, em certa medida, restabelece a situação psicológica vigente antes de Nicolau Copérnico (1472-1543) tornar público o seu sistema heliocêntrico.
Como se sabe, antes de Copérnico, a teoria vigente era geocêntrica, segundo proposição de Ptolomeu (+-90-168 d.C.), em seu Almagesto. Essa ideia foi entusiasticamente adotada pelos teólogos medievais, posto que se ajustava como luva à estratégia de consolidação do modelo imperial e canônico assumido pela Igreja Católica, que emergiu do Concílio de Niceia (325 d.C.). Durante mais de mil anos, a catequese que emanava dos púlpitos que exerciam o monopólio do conhecimento rejeitava qualquer teoria que não conferisse à Terra o lugar de centro do universo, com o evidente efeito psicológico implícito de exacerbar o ego, o orgulho da espécie e a individualidade.
Basta imaginar-se em plena noite medieval, contemplando a Via Láctea, convencido de que a Terra estava estoicamente parada e de que toda aquela grandiosidade celeste circulava em reverência ao redor dela, para dar-se conta do tamanho da presunção e do egocentrismo lentamente inculcado no espírito humano, ao ponto de levá-lo a entender Deus como divindade privativa da espécie humana. A ancestralidade animal e os próprios instintos básicos frente às restrições e aos desafios naturais, já colocavam a individualidade e o egoísmo como posturas naturais, em face das inóspitas e injustas condições da vida medieval, de sorte que a tese geocêntrica encontrou não apenas condições políticas favoráveis para prevalecer, mas também um estado de ânimo favorável à sedimentação do egoísmo e do individualismo, principalmente, nas classes dominantes que, em todos os tempos, servem de modelo ao povo.
O resultado desse processo pode ser verificado, inicialmente, na presença do egoísmo e do individualismo em todos os setores da vida moderna, mas, historicamente, esses sentimentos ficam evidentes nas reações geradas pela tese copernicana, que não apenas retirava uma posição privilegiada do planeta, mas também denunciava o egocentrismo tanto do clero como dos príncipes. Quando surge o cogito, o individualismo, que perdeu espaço com a teoria heliocêntrica, ganha novo fôlego, manifesto em teorias liberais e democráticas que tomam conta da modernidade. Não é mais o planeta o centro geográfico do universo, mas é o homem o seu centro interpretativo.
Quando se juntam as implicações estruturais de um universo espacial, necessariamente materialista, com o padrão comportamental próprio de um espírito individualista forjado no egoísmo, temos dadas as condições determinantes do padrão ocidental de civilização, em que a competição prevalece, o consumismo é uma febre endêmica e o obsoletismo é programado, a esperteza e a enganação predominam, a razão é sempre provinciana, as instituições públicas são meras ferramentas a serviço de um sistema de controle social, a conquista de patrimônio material constitui a medida de aferição de sucesso ou de fracasso, tudo tem preço e pode ser comprado, o ter dispensa ou eclipsa o ser. Enfim, temos um mundo no qual o espiritual é desdenhado pelo erudito e atribuído a pobres de espírito e a sonhadores que se preocupam com questões éticas e são incapazes de perceber as vantagens evidentes do pragmatismo econômico.
Poderíamos nos estender nessa coleção de exemplos, mas acreditamos que o exposto seja suficiente para sustentar a nossa tese de que, quando este período se encerrar, o que hoje chamamos de civilização ocidental poderá receber, com justiça, o nome de civilização cartesiana, em razão do seu paradigma civilizatório geratriz.
Obviamente, a redução a um paradigma civilizatório envolve sempre um esforço de síntese fenomenológica e, sendo a percepção humana tipicamente diversificada, sempre será possível encontrar outros aspectos essenciais importantes, igualmente presentes no espírito desses tempos. De qualquer forma, parece inegável que, diante da dualidade cartesiana corpo e alma e da dualidade epistemológica sujeito e objeto, também típicas dessa época, egocentrismo e materialismo cobrem justamente esses dois aspectos e explicam a maior parte das consequências.
Na consideração apropriada da ação normativa de um paradigma civilizatório, sobre uma população contendo grandes contingentes sequer capazes de perceber o papel dos referenciais, cumpre considerar as lições de Giorgio Agamben (2009). Esse pensador italiano capitaliza, no conceito de dispositivos, percepções que remontam a Focault, a Hegel e a Heidegger, para indicar os artifícios de toda espécie que, na prática, possibilitam o controle social e mantém os processos de subjetivação em conformidade com o modelo civilizatório. Textualmente, Agamben (2009) define dispositivos como “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” e se estende dando exemplos que vão de manicômios, escolas, fábricas, normas, leis, instituições até, por fim, incluir a própria linguagem. Com isso, Agamben nos mostra como um paradigma civilizatório cria os “soldados” (dispositivos), que vão realizar o trabalho miúdo de campo.
Agamben percebe que o surgimento de dispositivos não foi um acidente com o qual os homens depararam por mero acaso, mas resultou ocorrências estruturais implícitas no processo de humanização “que tornou humanos os animais que classificamos sob a rubrica homo sapiens”. Na busca de antecedentes explicativos, Agamben se depara com o termo oikonomia, que, em grego, significa administração da casa e que se situa como práxis correspondente a uma pura teoria, isto é, corresponde à dimensão operativa do puramente teórico. Para explicar o conceito, recupera embate ocorrido no interior da Igreja Católica nascente, quando oikonomia foi instrumento de convencimento utilizado para vencer as resistências que se ofereciam ao estabelecimento da trindade de Deus, alegando possível repique politeísta. A tese vencedora defendeu que o conceito abstrato de Deus teria dificuldade de ser assimilado pelo povo, mas que sua manifestação operativa como Pai, Filho e Espírito Santo facultaria compreensão mais amigável.
A criação de dispositivos como artifícios operacionais de um conceito puro que demanda capacidade intelectiva mais desenvolvida também é encontrada em outro absoluto, no conceito de eterno, tornado bem mais acessível quando decodificado como trilogia temporal – passado, presente e futuro –, quando, então, como tempo congelado, como tempo circular ou como tempo que não se esgota, embora conceitos simplórios, tornam-se humanamente compreensíveis, superando as dificuldades de apreensão presentes no conceito geratriz unitário.
Agamben não deixa de notar que, com essa solução, os padres separaram o ser Deus da ação divina, de sorte que toda a ação futura, seja ela econômica, política ou social, fica divorciada se não dispensada de um fundamento no ser. Com essa constatação, ele textualmente sentencia: “esta é a esquizofrenia que a doutrina teológica da oikonomia deixa como herança à cultura ocidental” (AGAMBEN, 2009, p. 37).
Observe-se que, nessa constatação, Agamben nos fornece um belo antecedente do esquecimento do ser que será exacerbado pelo paradigma cartesiano ao privilegiar e priorizar o ter. Cumpre observar, ainda, que esse esquecimento do ser também representa essencialidade presente no inconsciente da mentalidade ocidental moderna, condição na qual poderia também cumprir ou reivindicar papel paradigmático. Não obstante, parece que lhe falta a condição de causa primeira presente no paradigma cartesiano, pois admite perfeitamente uma pergunta sobre a causa desse esquecimento, o que nos remeteria a um plano mais essencial em que surgem todas as dicotomias e, virtualmente, as estruturas operativas da mente que não são mais meras opções culturais, mas condições estruturais de toda intelecção.
Assim, o conceito de dispositivos de Agamben ajuda a esclarecer como o paradigma civilizatório se impõe na prática e por que a população, mesmo não tendo consciência do paradigma que lhe determina o padrão civilizatório, limita-se a repetir os comportamentos correspondentes e, ainda, imagina desfrutar da mais plena liberdade e livre arbítrio, quando, na verdade, está completamente capturada pelos dispositivos que tentam manter a casa em ordem. Impossível, porém, desconhecer que o descuido com as questões espirituais e éticas, manifesto claramente na corrupção política, no desrespeito de alunos a professores, na precariedade da segurança pública, na degradação dos costumes, na desvalorização da vida, na persistência de miséria e de fome, em vastos contingentes populacionais, e em uma lista interminável de vergonhosas chagas planetárias, que deporiam contundentemente contra a espécie humana em qualquer tribunal cósmico.
O padrão cartesiano de civilização centrado no materialismo e em uma individualidade dissociada da natureza, que mal consegue tolerar o outro, tem estreito horizonte de sobrevivência, pelo simples fato de a matéria que tanto aguça o desejo humano constituir uma das ocorrências mais escassas do universo, enquanto o modelo civilizatório nos impinge um consumismo crescente, cuja síntese dialética resulta no uso predatório da natureza. Isso, claramente, não vai dar certo, como tem sido insistentemente advertido por intelectuais das mais diversas procedências. O próprio Agamben, após criticar a proliferação de dispositivos biométricos na Europa, mesmo quando se constata “o corpo social mais dócil produzido na história”, em face de um governo mecânico que somente sabe preservar-se, não tem dúvidas em concluir:
No lugar do anunciado fim da história, assiste-se, com efeito, ao incessante girar em vão da máquina, que, numa espécie de desmedida paródia da oikonomia teológica, assumiu sobre si a herança de um governo providencial do mundo que, ao invés de salvá-lo, o conduz – fiel, nisso, à originária vocação escatológica da providência – à catástrofe. (AGAMBEN, 2009, p. 50).
Poderíamos, ainda, arrolar muitas outras características presentes no modelo civilizatório ocidental, da mesma forma que seria ainda possível identificar muitos outros pressupostos cognitivos, operando e sustentando, subliminarmente, o modelo, mas, em termos de paradigma civilizatório, dotado do requisito de constituir um princípio primeiro, estruturador e modelador de um padrão civilizatório que, portanto, não pode remeter a uma questão ainda mais fundamental, pensamos que o par conceitual “cogito, ergo sum e coordenadas do espaço” cumpre, adequadamente, esse papel. O cogito foi justamente formulado por Descartes, como primeira certeza autoevidente: “penso, logo existo”. Embora o “logo existo” possa sofrer ataques, o “penso” resulta inquestionável como demonstração da presença de uma consciência ativa. Não há, aqui, como ir além. Já o sistema de coordenadas vem apenas formalizar a percepção que sempre foi evidente aos olhos orgânicos do homem: o mundo está contido no espaço. Essa percepção representa limite perceptivo do sensor ótico de que somos organicamente dotados. Para ir além, seria necessário abandonar o sensor ótico orgânico e adotar recurso de percepção de natureza superior, como pensamos ser o caso da consciência. Dado que a evolução do pensamento científico em toda a modernidade, apesar da inclusão do tempo, tem se dado pelo aporte de instrumentos que, principalmente, ampliam a capacidade perceptiva dos nossos sensores orgânicos, pensamos que a visão de mundo continua limitada à tridimensionalidade do espaço, que encontra sua melhor formalização no sistema de coordenadas.
Mário Ferreira dos Santos, em seu estudo sobre o um e o múltiplo em Platão (SANTOS, 2001), embora centrado no propósito de demonstrar o caráter fragmentador do espírito científico da modernidade, em termos platônicos, voltado para o todo que é múltiplo, registra também entendimento do papel paradigmático exercido pelo cartesianismo em nosso tempo. Ele afirma textualmente: “O racionalismo cartesiano e as filosofias decorrentes valorizam a parte em detrimento do todo. Descartes divide o objeto em quantas partes forem necessárias para melhor conhecê-lo. O paradigma cartesiano se caracteriza como o da divisão e da análise (separação). Há, portanto, uma valorização do múltiplo e do objeto em si mesmo e não importam as relações do objeto com o seu redor. Dessa concepção surge a tendência de privilegiar o especialista em detrimento do universalista. O múltiplo em sua particularidade torna-se mais relevante do que o um em sua universalidade”. Como se observa, embora Santos destaque o caráter fragmentador e analítico da ciência moderna, com o objetivo de mostrar o esquecimento da unidade e, portanto, do ser dos fenômenos, fica claro que ele caracteriza essa perspectiva como sendo cartesiana e aporta, com a fragmentação, contribuição adicional à caracterização da modernidade em que estamos empenhados. Quando examinarmos o paradigma capaz de superar o cartesianismo, veremos que, não por acaso, ele também supera a fragmentação que Santos evidencia nesse texto.
Dessa forma, consideramos coletados elementos suficientes para considerar atingido o propósito deste capítulo de identificar o paradigma civilizatório gerador do modelo ocidental de civilização, da mesma forma que consideramos justificado identificar o período civilizatório que sucede a Idade Média, como modernidade cartesiana. Na mesma medida, pensamos que também fica claro que o próximo período civilizatório, caso represente evolução, terá, necessariamente, de superar o paradigma cartesiano.
Finalmente, considerando o papel essencial e determinante que o individualismo e o materialismo cumprem na configuração do mundo ocidental, condicionando as mentes e as atitudes humanas em todos os setores e em todos os momentos da vida, parece justificado atribuir ao cogito e ao sistema de coordenadas cartesianas o papel paradigmático predominante na configuração desse modelo.