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Para uma nova interpretação de Platão de G. Reale - extrato de R. Rodrigues

Giovanni Reale - 03/06/2022

Para uma nova interpretação de Platão – Releitura da metafísica dos grandes diálogos à luz das “Doutrinas não-escritas”. – Giovanni Reale, Tradução de Marcelo Perine, Ed. Loyola, São Paulo, 2004, 14 edição Italiana, 2ª edição Brasileira.

 PREMISSAS METODOLÓGICAS ESSENCIAIS

 01. O paradigma hermenêutico dos discípulos de Platão é claro: o pensamento do fundador da Academia tem como fundamento último a teoria dos Princípios, que não está nos diálogos. Pg. 31

A SEGUNDA NAVEGAÇÃO E OS DOIS NÍVEIS DA METAFÍSICA DE PLATÃO

 02. Em outras palavras, como já dissemos, a “segunda navegação”, segundo o mapa traçado pelo Fédon, se realiza em dois momentos: no primeiro momento, alcança-se o plano das ideias, enquanto, no momento sucessivo, se alcança o plano dos Princípios, ou seja, o plano supremo. Pg. 113

 03. As características basilares das ideias podem ser resumidas nos seguintes seis pontos...:

       (1) a inteligibilidade (a ideia é, por excelência, objeto do intelecto e captável apenas por ele)

       (2) a incorporeidade ( a ideia pertence a uma dimensão totalmente diferente do mundo corpóreo sensível)

       (3) o ser em sentido pleno (as ideias são o ser que verdadeiramente é)

       (4) a imutabilidade (as ideias são subtraídas a qualquer forma de mudança, não só ao nascer e ao perecer)

       (5) a perseidade (as ideias são em si e por si, ou seja, absolutamente objetivas)

       (6) a unidade (as ideias são, cada uma delas, uma unidade, unificadora da multiplicidade das coisas que delas participam).

04. Reale comentando passagem do Fédon: é particularmente interessante a afirmação da existência de dois planos do ser: o do ser físico (sensível) e o do ser suprta-sensível ou meta-físico (não-sensível), que justamente, enquanto tal, é “eterno” e “permanente”, como veremos. Pg. 128

 05. Platão concebeu e fixou duas características fundamentais das ideias, justamente a imutabilidade e a perseidade, ou seja, a sua objetividade estável. Portanto, é claro o que significa afirmar que as ideias são “imutáveis” e “em si e por si”: significa que têm uma realidade que não é arrastada no devir e que não é relativa ao sujeito, uma realidade que não é possuída pela perene mudança e não é manipulável segundo o capricho do sujeito, mas implica estrutural firmeza e estabilidade. Pg. 136

 06. Sobre o dualismo platônico: as realidades empíricas são sensíveis, ao passo que as Idéias são inteligíveis; as realidades físicas são mescladas com o não-ser, enquanto as Idéias são ser em sentido puro e total; as realidades sensíveis são corpóreas, enquanto as Idéias são incorpóreas; as realidades sensíveis são corruptíveis, enquanto as Idéias são realidades estáveis e eternas; as coisas sensíveis são relativas, ao passo que as Idéias são absolutas; as coisas sensíveis são múltiplas, ao passo que as Idéias são unidade. Pg. 139

 07. Com a teoria das Idéias,..., Platão quis dizer o seguinte: o sensível só se explica com a dimensão supra-sensível, o corruptível com o ser incorruptível, o móvel com o imóvel, o relativo com o Absoluto, o múltiplo com o uno. Pg. 145

 08. Sobre a relação entre ideias e mundo sensível. Platão nos seus escritos, apresenta diferentes perspectivas a respeito, afirmando que entre sensível e inteligível há (a) uma relação de mimese ou imitação, (b) ou de metexi ou participação, (c) ou de kionomia, ou comunhão, (d) ou ainda de parousia ou presença.... Mas Platão no Fédon disse explícitamente que esses termos deveriam ser entendidos como simples propostas sobre as quais ele não pretendia insistir, e às quais não pretendia dar a consistência de uma resposta definitiva; o que lhe interessava era, simplesmente, estabelecer que a Idéia é a verdadeira causa do sensível, ou seja, o princípio das coisas, a sua ratio assendi, o seu fundamento e a sua condição metafísica. Pg. 155

 09. Platão exprime com o termo “paradigma” aquilo que, em linguagem moderna, se poderia chamar de “normalidade ontológica” da Idéia, isto é, o como as coisas devem ser, ou seja, o dever-ser das coisas (e portanto, o ser metafísico regulador das coisas). Pg. 155

 10. a relação entre as coisas e as Idéias não pode ser concebida como imediata, e portanto, se impõe um mediador, ou seja, um princípio que opere a imitação, assegure a participação, ponha em ato a presença e funde a comunhão. Pg. 156

 11. A mediação entre o sensível e o inteligível é obra de uma inteligência suprema, associada a imagem do Demiurgo, que se tornou clássica, ou seja, a imagem de um Artífice que plasma o chora (vale dizer, uma espacialidade indeterminada, uma espécie de substrato ou de recipiente informal), em função do “modelo” das Idéias, fazendo com que cada coisa assemelhe, imite, o mais perfeitamente possível, o seu “paradigma” ideal. Pg. 156

 12. Porque Platão admite como originários dois Princípios e não um: Portanto, o problema do qual partimos resolve-se deste modo: a pluralidade, a diferença e a gradação dos entes nascem da ação do Uno, que determina o Principio oposto da Díade, que é multiplicidade indeterminada. Os dois Princípios são, portanto,igualmente originários. O Uno não teria eficácia produtiva sem a Díade, embora seja hierarquicamente superior à Díade.

       Para ser exatos, devemos dizer que seria incorreto falar de dois Principios, se se entendesse o dois em sentido aritmético... Seria mais exato falar em... bipolarismo.  Pg. 164

 13. A ação do Uno sobre a Díade é uma espécie de de-limitação, de-terminação e de-finição do ilimitado, do indeterminado, do indefinido, ou, como parece que o próprio Platão já dizia, de igualização do desigual. Pg. 165

 14. Este é o núcleo da protologia platônica: o ser é produto de dois princípios originários e é, portanto, uma síntese, um misto de unidade e de multiplicidade, de determinante e determinado, de limitante e ilimitado. Pg. 165

 15. Krämer: Tudo o que é, é na medida em que é delimitado, determinado, distinto, idêntico, permanente, e enquanto tal participa da unidade originária, que é princípio de toda determinação. Nada é algo, se não é de algum modo um algo. ... O ser, por isso, é essencialmente unidade na multiplicidade. Pg. 165

 16. Krämer: O ser é definido como o que é gerado a partir dos dois princípios mediante delimitação e determinação do princípio material por parte do principio formal, sendo de certo modo um misto. Esse é o núcleo da concepção ontológica fundamental de Platão.

       Segue-se daí que os próprios princípios não são ser, mas enquanto constitutivos de todo ser, são anteriores ao ser e, portanto, a unidade como princípio de determinação está acima do ser, o princípio material indeterminado como não-ser está abaixo do ser. Pg. 165/6

 17. Os números ideais dos quais nos ocupamos não são os matemáticos, mas os metafísicos: são, por exemplo, o Dois como essência da dualidade, o Três como essência da trialidade, e assim por diante. Pg. 167

 18. Platão, diz Teofrasto, ao remeter as coisas aos Princípios, procede por etapas (a) ligando as coisas sensíveis às Idéias, (b) ligando “estas com os Números”, e enfim (c) subindo “desses aos Princípios”. Portanto, entre Idéias e Números há uma estreita conexão, mas não uma identidade ontológica total. Pg. 170

 19. Aristóteles, com efeito, nos diz expressamente que Platão, na geração dos Números ideais, “chegava até a dezena”. Portanto, ele subordinava à Dezena e a ela ligava os processos dedutivos de todos os outros números. Pg. 171

 20. Aos dez números da Dezena se referiam as Idéias gerais, às quais deviam se submeter as várias relações. (logoi). Pg. 171

 21. Um último ponto deve ainda ser observado nessa complexa questão. Os Números ideais supremos (contidos na Dezena) são o paralelo do que veremos ser as Idéias generalíssimas ou Meta-Idéias; elas, em geral, exercem função reguladora, e junto com o complexo dos logoi numéricos, no âmbito das “Doutrinas não-escritas” de Platão, oferecem a trama metafísica de toda a realidade. Pg. 172

 22. A fonte teorética dessa doutrina deve ser buscada na convicção, bem fundamentada em Platão, da correspondência estrutural perfeita entre conhecer e ser (“o mesmo é o conhecer e o ser”), pela qual a um determinado nível de conhecimento de determinado tipo deve necessariamente corresponder um relativo nível de ser. Pg. 174

 23. A estrutura do próprio ser, especialmente, não é de tipo matemático; e as leis matemáticas, consideradas no seu conjunto, não têm o seu fundamento no âmbito matemático, mas, em sentido último, nos princípios gerais do ser. Pg. 176

 24. A estrutura hierárquica da realidade. Esquema ilustrativo:

       Plano dos Princípios                    Uno e Dualidade indeterminada

       Plano das Idéias                          Números e Figuras ideais / Meta-Idéias / Idéias gerais e partic.

       Plano dos entes matemáticos      Objetos da matemática/geometria plana/astronomia...

       Plano do mundo físico

 25. Krämer: Têm-se, portanto, uma relação de dependência unilateral não reversível, na qual, todavia, o plano mais elevado oferece apenas condições necessárias, mas não também suficientes, para o plano seguinte... Reale: Isso significa que nos encontramos diante de um tipo de dependência metafísica dos planos sucessivos do ser, que implica, por assim dizer, um adensamento a cada etapa sucessiva do Princípio diádico, que não é deduzido nem sistematicamente explicado, mas simplesmente apresentado como tal. Pg. 177

 26. Nesse sentido, a causação que o plano mais elevado exerce é necessária, mas não suficiente, porque ela só explica o aspecto metafísico formal do plano sucessivo, mas não a sua diferença de conteúdo, que depende do Princípio diádico. Pg. 177/8

 27. Sobre  tríplice valência do Uno: (1) O Uno, agindo sobre o múltiplo ilimitado, o de-termina, o de-limita, o ordena e, portanto, o unifica, produzindo, desse modo, os entes (o ser) em vários níveis,.. (2) Mas o que é de-limitado, de-terminado e ordenado é estruturalmente cognoscível. Portanto, unidade, limite e ordem são o fundamento da cognoscibilidade das coisas. (3) Mas agindo desse modo sobre o múltiplo, o Uno produz ordem e estabilidade e, portanto, produz também valor. De fato, o que é ordenado, harmonioso e estável é também bom e belo. O Bem é, portanto, a ordem produzida pelo Uno. Pg. 181

 28. Ademais, com base em uma série de indícios precisos, pode-se extrair a definição de Unidade dada por Platão, como “medida”, como “medida exatíssima” da multiplicidade e, portanto, como “medida suprema de todas as coisas”.

 29. Aristóteles: E uma demonstração decepcionante é aquela segundo a qual o uno em si é o bem, porque os números aspiram : de fato, eles não dizem claramente como os números tenham uma aspiração, mas afirmam isso de maneira muito geral; e como se pode admitir que exista desejo em coisas nas quais não há vida? Pg. 183

 30. Sobre supremas duplas de contrários ou Meta-idéias: Eis, por exemplo, quatro das duplas mais significativas: Identidade-Diferença; Semelhança-Dessemelhança; Quietude-Movimento; Par-Impar. .. Platão visava remeter as Idéias gerais que constituíam os contrários aos dois Princípios supremos. A função dessas ideias deveria ser de caráter “regulador” e, provavelmente, análogo à função dos Números ideais. Pg. 189

 31. Reafirmamos mais uma vez o conceito essencial de que cada membro das duplas de contrários jê é o resultado sintético dos dois Princípios... A identidade, por exemplo, não é o Uno, mas uma primeira especificação sua (e uma primeira determinação do indeterminado na qual prevalece a Unidade). Analogamente a Diferença não é o puro indeterminado, mas é uma primeira determinação do indeterminado (na qual prevalece não o Uno, mas o indeterminado), e assim por diante. Pg. 189

 32. No livro E da Metafísica, Aristóteles tenta demonstrar a perfeita convergência da ontologia e da teologia,...Jaeger considera essa passagem como “acréscimo posterior”, feito pelo Estagirita para conciliar a sua “primeira” concepção da metafísica entendida como teologia e de inspiração platônica, e a sua nova concepção da metafísica como teoria do ser enquanto ser, de caráter totalmente diferente da primeira, e propriamente aristotélica (ou seja, não mais platônica). Pg. 191

 33. De fato, nós, modernos, entendemos por “ideia” um conceito, um pensamento, uma representação mental, em suma, algo que nos remete ao plano psicológico e noológico; Platão, ao contrário, entendia por “ideia”, em certo sentido, algo que constitui o objeto específico do pensamento, a saber, aquilo a que o pensamento se remete de maneira pura, aquilo sem o que o pensamento não seria pensamento: em suma, a Idéia platônica não é absolutamente um puro ente da razão. É um ser, antes, é o ser que é absolutamente, o verdadeiro ser, ... Pg. 195 (Inteligência organizativa?)

 34. Platão possuía o olho plástico do heleno...A prova dessa consciência está no fato de que justamente a Platão se deve a criação das expressões “olho da mente”, “olho da álma”, para indicar a capacidade do intelecto de pensar e de captar a essência. Pg. 197

 35. Filolau, exprimindo e levando a cabo uma concepção que já devia pertencer ao primeiro pitagorismo, senão ao próprio Pitágoras, fala-nos expressamente do ilimitado (ou indeterminado ou infinito) e do limite (ou limitante ou determinante) como de princípios primeiros e supremos de todas as coisas. Pg. 203

OS NEXOS ESTRUTURAIS ENTRE A TEORIA DAS IDÉIAS E A PROTOLOGIA

 36. Que significa, portanto, a afirmação de que o Uno-Bem está acima do ser? Se o ser, como sabemos, é identificado sobretudo com o mundo das Ideias e, portanto, com a pluralidade dos entres ideais (a República é talvez o diálogo em que a equação do mundo das ideias com o verdadeiro ser mostra-se mais acentuada), e se as Ideias são tais enquanto geradas de uma delimitação e determinação de uma multiplicidade (a Díade indeterminada) por obra e ação do Uno, ou seja, se são uma síntese, isto é, um misto dos dois Princípios, então é claro que o Uno, servindo justamente de causa unificadora e limitadora do múltiplo indeterminado, não deve ser simplesmente uma –ousia?-, ou seja, “substância” e “ser” (que implicam estruturalmente uma mistura dos dois Princípios), mas deve situar-se acima do ser enquanto não implica uma síntese e um misto, e deve ser “superior em dignidade e poder” porque, justamente, é a causa suprema que determina, delimita e unifica o Princípio oposto, fazendo surgir todas as essências e, portanto, todo ser. Pg. 261

 37. É bem verdade que Aristóteles não confirma o fato de Platão chamar o Uno de “acima do ser”. O Estagirita, antes, fala muitas vezes do Uno platônico como de um ser supremo ou ser em si... a linguagem eleática preferida por Aristóteles não desmente nada, antes convalida algumas expressões paralelas que se encontram no próprio Platão, o qual, na própria República, chama o Bem também com a expressão “o fulgor máximo do ser”, e ainda “o ótimo entre os seres”. Pg. 261

 38. Em suma, falar de “fulgor máximo do ser” ou de “ser em si” significa usar o termo “ser” em sentido prototípico, e, portanto, em sentido diferente relativamente ao uso comum. Em última análise, a expressão “fulgor máximo do ser” tem o mesmo significado da afirmação de que o Bem está acima do ser. Pg. 261

 39. Em suma: como o uno enquanto condição dos números não é número, assim, analogamente, o Uno enquanto condição do ser não é ser, no sentido de que a condição se diferencia metafisicamente do modo estrutural do condicionado. Pg. 262

 40. ... se Bem = Uno, o Estado perfeito é o que realiza a Unidade; e se Mal = Díade de grande-e-pequeno e Muitos, o Estado imperfeito é o dominado pela dualidade (pela cisão) e pela multiplicidade, justamente porque o Bem é a unidade e o Mal é a divisão e a multiplicidade desagregadora. Pg. 264

 41. Finalmente se mostra a conclusão última: o Bem é o Uno, e o Uno é a medida absoluta de todas as coisas. Pg. 274

 42. Falamos de “não-ser” em dois sentidos muito diferentes: (a) às vezes o entendemos como contraditório do ser (ou seja, como negação do ser); (b) às vezes, ao contrário, o entendemos como o “outro” do ser, ou seja, o entendemos não como o contrário, mas como o diverso do ser. No primeiro sentido, o não-ser não pode existir (porque não pode ser o que é negação do ser); ao contrário, no segundo sentido, pode existir, porque possui uma natureza específica (a natureza da alteridade e da diversidade). Pg. 300

 43. Mas a posição dos eleatas implica ulteriores complicações na medida em que fazem coincidir o Uno e o Todo. Com efeito, Parmênides, identificando o Todo com uma esfera, acaba atribuindo-lhe, necessariamente, um centro e os extremos e, portanto, “partes”. Ora, o que possui partes pode participar do Uno, mas não pode ser por si o Uno; com efeito, o Uno enquanto tal é indivisível e, portanto, está acima das partes. Nem se pode, com Parmênides, identificar em geral Ser, Uno e Todo, porque cada um deles tem uma natureza própria e distinta: o Ser participa do Uno e, contudo, não é o Uno; o Todo é algo mais do que o Uno, enquanto contém tanto o Ser como o Uno. Pg. 304

 44. Transcrição do Sofista. Estrangeiro – Portanto, para quem é filósofo e leva essas coisas em consideração, impõe-se, como se vê, a total necessidade de não aceitar dos defensores do Uno ou das múltiplas Idéias que tudo seja imóvel, e tampouco dar totalmente ouvidos aos que movem o ser em todos os sentidos; mas seguindo inspiração das crianças, que “o que é imóvel também se mova”, deve dizer do ser e do todo tanto uma como outra coisa. Pg. 309

 45. Eis em que consiste, mais precisamente, essa relação e esse “dom dos deuses aos homens”: o ser enquanto tal contém em si o limite e o ilimite (o peras e o apeíron), que se mostram componentes essenciais, igualmente necessários. Tal afirmação vale para todo ser, a começar pelas próprias Ideias,... Pg. 331

 46. De fato, os conceitos de (1) “ilimite” e de (2) “limite” são retomados com valência ontológico-cosmológica. Afirma-se que o que existe no universo implica, precisamente, esses dois fatores de maneira sistemática. Mas explica-se que, além desses dois gêneros, para compreender a estrutura ontológica da realidade física, é preciso acrescentar (3) a “mistura” de limite e ilimite, como terceiro gênero, e (4) enfim, a ulterior “causa da mistura”... A “mistura” é produzida pelo limite que age sobre o ilimite, efetuando perfeição, proporção, ordem e regularidade. Pg. 335

 47. Mas, no caso do mundo sensível, que é em devir, impõe-se uma causa eficiente, ou seja, uma causa produtora da mistura. Essa causa é implicitamente identificada com a inteligência. As misturas particulares relativas às artes e às atividades humanas implicam a inteligência humana; mas as misturas do cosmo em geral e das coisas do cosmo em particular, que não dependem da inteligência do homem, implicam uma inteligência cósmica, ou seja, o Demiurgo. Pg. 336

 48. Na primeira discussão, o Demiurgo não é mencionado expressamente, porque se trata da realidade das Ideias eternas, que, enquanto tais, não se geram e não advêm. Ao contrário, as causas físicas se geram e advêm: e o Demiurgo é, justamente, a causa necessária para explicar a realidade em devir. Portanto, o cosmo e as coisas do cosmo (ou seja, todas as realidades sensíveis) não são explicáveis sem o Demiurgo, ou seja, sem a Inteligência. Pg. 336

 49. Citação do Górgias. Este parece ser o fim em função do qual o homem deve viver. E para esse fim devem tender todas as suas energias e as da Cidade: que a justiça e a temperança estejam presentes em todos os que querem ser felizes. Desse modo, ele deve se comportar, e não deve permitir que os seus apetites se descontrolem para depois tentar satisfazê-los – mal irremediável -, vivendo assim uma vida de ladrão. De fato esse homem não pode ser amigo nem de outro homem nem de deus, porque não é capaz de comungar, e onde não há comunhão não pode haver amizade.

 50. Continuação. E os sábios, ó Cálicles, dizem que céu, terra, deuses e homens são mantidos juntos pela comunhão, pela amizade, pela ordem, pela temperança e pela retidão. E é justamente por essa razão, caro amigo, que eles chamam esse todo “cosmo”, e não ao contrário, desordem e falta de regras. Ora parece-me que não pensas nessas coisas, mesmo sendo tão sábio, e parece-me que te escapou que a igualdade geométrica tem um grande poder entre os deuses e entre os homens. Ao contrário, crês que se deva buscar o excesso e descuidas da geometria. Pg. 347/8

 51. Essa passagem do Górgias acima citada é, sob muitos aspectos, a primeira referência explícita à dimensão matemática que constitui a via de acesso às “Doutrinas não-escritas”, pela evocação da igualdade geométrica, que, de modo como é apresentada, pressupõe um fundo teórico já delineado por Platão... Portanto, a amizade e também o amor dos homens não é mais que reflexo, justamente no nível antropológico, da estrutura metafísica de toda a realidade e dos seus nexos fundadores. Pg. 348

 52. Erixímaco e a dimensão cósmica de Eros: A distinção de um duplo gênero de amor parece-me ser exata, mas que ele não subsista só nas almas dos homens e nas dos mais belos, mas que subsista também nas outras coisas e por muitas outras coisas, ou seja, nos corpos de todos os outros animais, nos vegetais, e, numa palavra, em todas as coisas que são, ..., ou seja, que verdadeiramente Eros é um deus grande e maravilhoso e se estende sobre todas as coisas humanas e divinas. Pg. 349

 53. Eros é sempre desejo daquilo de que se carece. Tal desejo e tal carência, que o caracterizam de maneira essencial, referem-se às coisas belas e boas. Mas se Eros é carente de coisas belas e boas não pode ser, por si, belo e bom; nem por isso se mostra feio e mau, porque se fosse tal não poderia desejar o belo e o bom. Pg. 351

 54. Por uma restrição linguística, observa Platão, só a específica tendência ao Bem na dimensão do amor pelo belo é chamada de Eros.

       Portanto, Eros, entendido em geral, é a tendência ao Bem, e, antes, a tendência a possuir o Bem para sempre.

       Efetivamente, é o Belo que leva a alma a realizar as suas melhores virtudes e as suas maiores obras. Pg. 352

 55. Noutros termos, a natureza bipolar em sentido dinâmico exprime a tendência, sempre crescente em vários níveis, do princípio material a receber o principio formal, elevando-se, assim fecundado, sempre mais na direção do Princípio primeiro e supremo do Bem. E no seu perene reproduzir-se, e no seu continuo realizar-se em vários níveis, nessa dimensão dinâmico-bipolar, Eros garante a estabilidade da permanência do ser. Pg. 355

 56. Aqui verdadeiramente Platão diz-e-não-diz, exatamente como o oráculo de Delfos nas suas respostas, falando por “alusões” de maneira quase perfeita; ou, melhor ainda, faz aquilo que Ésquilo põe na boca do personagem com que começa o seu Agamênon: “De bom grado falo aos que sabem, dos que não sabem me escondo”. Pg. 358

 57. O que se manifesta no amor dos homens é a aspiração da Dualidade ou da cisão e separação à Unidade. E, consequentemente, o amor é uma nostalgia do Uno e um anelo de persegui-lo, que se desdobra em vários níveis, até alcançar o supremo. Pg. 360

 58. O homem que se servir de tais reminiscências corretamente, na medida em que é sempre iniciado aos mistérios perfeitos, será o único a se tornar realmente perfeito. Mas, por se afastar das ocupações humanas e por voltar-se para o divino, é acusado pela maioria de ter perdido a razão, porém eles não percebem que, ao contrário, ele está possuído pela divindade. Pg. 362

 59. O Belo é um modo de desdobrar-se do Uno na dimensão do ser, ou seja, da Medida suprema, por policrômica reflexão, em vários sentidos, da Medida e da Ordem nas diversas formas do medido e do ordenado, e nesse sentido é a visibilidade do Uno. Noutros termos, o Belo nos revela o Uno nas relações proporcionais e numéricas nas quais se desdobra, além do nível do inteligível, também na dimensão física do “visível”. Pg. 370

 60. Enfim, agora é evidente em que sentido o Eros platônico, que se nutre e se sacia do Belo, esteja bem longe do irracional e do alógico, como alguns parecem crer, e as razões pelas quais uma investigação psicanalítica dessa problemática platônica toque apenas aspectos marginais e permaneça longe dos fundamentos. Pg. 370/1

A DOUTRINA DA INTELIGÊNCIA DEMIÚRGICA E AS SUAS RELAÇÕES COM A PROTOLOGIA

 61. O céu e a terra ocupam as posições em que se encontram, não porque são mantidos em conjunto apenas pelas forças físicas, mas porque são mantidos juntos pela força divina do Bem e do conveniente. Pg. 383

 62. a Inteligência deve ser estruturalmente conexa com o Bem, e justamente no Bem deve ser posto o ponto de referência irrenunciável, para poder explicar a geração, o devir e o ser das coisas; Pg. 384

 63. para conquistar essa perspectiva (assim termina a última passagem do Fédon que lemos) é necessário realizar a “segunda navegação”, ou seja, alcançar o plano do inteligível, do qual o Bem constitui o vértice; antes, Platão nos diz até mesmo que é necessário adquirir o conhecimento do melhor e do pior, ou seja, a estrutura bipolar dos Princípios. Pg. 384

 64. A mensagem fundamental do nosso filósofo pode ser resumida assim: à descoberta da Inteligência como causa das coisas chegaram também os físicos; porém, ficando no plano puramente sensível, o papel da causalidade da Inteligência se esvazia totalmente de qualquer eficácia; só com o estabelecimento da pirâmide metafísica e do seu vértice (o Bem), a Inteligência pode adquirir o seu significado e a sua consistência ontológica. Pg. 385

 65. Na maioria dos diálogos posteriores ao Fédon, a teoria da Inteligência cósmica e do Demiurgo é retomada, nos limites exigidos pelas diferentes temáticas tratadas... Pg. 385

 66. O cosmo pode ser representado por uma nave que procede com dificuldade no mar infinito da desigualdade no qual, separando-se progressivamente do seu Produtor, correria o risco de precipitar-se e desaparecer, se Deus que o criou não retomasse o timão para salvá-lo, e não o reordenasse, e desse modo não o impedisse que, seguindo a tendência oposta, se dissolvesse. Pg. 402

 67. Já no Fédon, relido adequadamente, ou seja, prestando atenção às afirmações de Platão sobre o grande mapa metafísico da “segunda navegação” e o seu significado, emerge que o Bem (o melhor, o ótimo) e a Inteligência não coincidem ontologicamente, e que o primeiro se mostra hierarquicamente superior à segunda, porque fornece as regras, ou seja, o ponto fixo de referência estrutural. E a República o confirma claramente. Pg. 403

 68. ... é preciso recordar que uma regra, ou seja, uma norma ou uma lei não era considerada pelo grego como dependente de Deus e a ele subordinada, ou seja, não era tida como posta por ele (para os gregos Deus não era nomóteta). Consequentemente, ela era considerada como ponto de referência ao qual o próprio Deus devia ater-se, e nesse sentido como algo hierarquicamente superior.

       E esta convicção, transposta do plano religioso em geral ao plano propriamente filosófico particular, torna-se a concepção expressa por Platão do Fédon em diante...por exemplo o Eutífron, no qual se sustenta a tese de que o santo não é tal porque agrada a Deus, mas, ao contrário, o santo agrada a Deus justamente porque é santo (impõe-se a Deus pela natureza ontológica). Pg. 404

 69. ... é preciso considerar essa doutrina platônica à luz da famosa concepção parmenidiana, que sob muitos aspectos plasmou a mentalidade grega, a saber, a relação estrutural entre o pensar e o que é condição basilar do pensar, ou seja, a relação incindível subsistente entre a Inteligência e o ser.

       Só o que é pode ser pensado; e o pensar permanece estruturalmente ligado ao ser (“o mesmo é pensar e ser”).... Em poucas palavras, o ser é a condição do pensar, ou seja, a razão fundadora e determinante do mesmo. Pg. 404

 70. O ser para Platão é um “misto” e, consequentemente, a criação do Demiurgo é a criação do misto, ou seja, um fazer passar da desordem à ordem, porque o ser é, justamente, esse ordenamento de uma desordem (uni-ficação de uma multiplicidade ilimitada)

       Platão vai muito além nesse ponto,...

       Com efeito, não se limita apenas a dizer que o Demiurgo combina na mistura elementos pré-constituídos, mas afirma até mesmo com precisão que ele constitui os mesmos. Noutros termos: o Demiurgo produz seja os elementos materiais de que as coisas derivam, seja os elementos formais em virtude dos quais é possível realizar no mundo sensível o mundo ideal, e assim atua o Bem (o Uno) em todos os modos possíveis, particularmente mediante os números e as estruturas matemáticas e geométricas. Pg. 408

 71. Portanto os gêneros supremos são os seguintes:

       (1) ilimite;

       (2) limite;

       (3) mistura de ilimite e limite;

       (4) causa da mistura. Pr. 410

 72. Sobre o gênero do ilimitado e a sua “unidade” e “multiplicidade”.

       Platão parte dos dois primeiros gêneros, o ilimite e o limite, afirmando que é preciso que cada um deles seja subdividido em muitos (seguindo o procedimento diarético) e que depois seja reconduzido à unidade (seguindo o procedimento sinótico) Pg. 412

 73. Mas a questão que à primeira vista apresenta grande dificuldade é a seguinte: quando Platão afirma o ilimitado como unidade, como se deve entender essa “unidade”?

       Evidentemente, Platão fala da unidade do Princípio antitético ao Uno absoluto, ou seja, do Princípio considerado unitariamente, que é necessário admitir para explicar a multiplicidade das coisas, a sua diferença e a sua gradação geral; e, com efeito, ele nos fala de “uma natureza única” no sentido de uma “unidade da natureza que acolhe o mais e o menos”. Pg. 413

        - peras = quantitativamente determinável

       - apeíron = quantitativamente indeterminável

 74. Concluindo, a natureza do “peras” está no Uno e nos vários modos nos quais o Uno, em diferentes níveis e de múltiplos modos, desenvolve a sua função de princípio, determinante e último. Pg. 419

  75. Sobre o quarto gênero supremo.

       O todo, ou seja, o universo em sua totalidade, é produzido por uma força irracional e puramente casual, ou devemos admitir uma Inteligência e uma Sapiência como causa produtora e ordenadora? Pg. 425

 76. Platão desenvolve seu raciocínio... dando-lhe uma grandiosa dimensão metafísica e cósmica.

       (a) Cada um dos quatro elementos que nos constituem está presente em cada um de nós só em pequena medida e tem escasso poder relativamente ao complexo formado pelo universo. E a lógica exige que esses elementos que estão em nós derivem dos que estão no universo, e deles se alimentem, e não vice-versa;

       (b) Esses elementos que nos constituem, coordenados e fixados em uma unidade, formam o nosso corpo. Pois bem, também os elementos no seu conjunto, coordenados no universo, analogamente constituem um corpo, um grande corpo.

       (c) Assim como as pequenas quantidades de elementos que estão em nós derivam dos que estão no cosmo e deles se alimentam, analogamente o nosso corpo, que é um conjunto unitário daqueles elementos, deve derivar do Corpo do cosmo e alimentar-se dele.

       (d) Ora, dado que a característica distintiva do nosso corpo é possuir uma alma, a mesma característica deverá se encontrar no Corpo do cosmo: de fato, como as coisas belas que existem em nós não poderiam ser explicadas sem a alma, assim, com mais razão, não se poderia explicar as propriedades muito mais belas presentes no universo, se ele fosse inanimado.

       (e) Particularmente, não se explicaria como o quarto gênero, ou seja, a causa de toda mistura, teria fornecido a alma dos corpos humanos, e não ao cosmo, que no seu conjunto tem maior valor. Pg. 428

 77. Aqui Platão fala claramente tanto da Inteligência do Demiurgo como da inteligência da alma cósmica, das quais tratará no Timeu,... Pg. 431 (??? Duas?)

 78. Dito de outro modo, no quarto gênero entra a inteligência em todas as suas formas, a começar pela Inteligência suprema, da qual deriva a inteligência da alma cósmica, e à qual estão conexas também as inteligências dos homens. Pg. 431

 79. Todavia, no nosso contexto, ligada como está ao outros Deuses, parece representar o primeiro e supremo “Deus gerado”, que é justamente a alma do cosmo. Pg. 431

 80. As conclusões de Platão são as seguintes: sobre a origem do universo não é possível fazer raciocínios verdadeiros em sentido absoluto. É possível fazer apenas alguns raciocínios verossímeis. A natureza humana, nesse âmbito, deve contentar-se com o “mito”, no sentido da “narração provável”, porque não é possível ir além disso, pela própria natureza do objeto de investigação. Pg. 444

 81. Platão não diz de modo nenhum, como muitos creem, que a doutrina do Demiurgo seja um mito (no sentido de narração provável). Ao contrário, a tese da necessária existência de uma Inteligência demiúrgica situa-se entre os quatro grandes axiomas metafísicos, cuja verdade é inquestionável, como demonstramos acima. Ele afirma que a própria natureza do ser em devir implica um tipo de discurso que não pode ser necessário e inquestionável como é o discurso que trata dos seres eternos. Pg. 445

 82. Dito de outro modo, para o nosso filósofo só o discurso metafísico é necessário; ao contrário, o discurso físico-científico é apenas provável, dada a diferente estrutura dos seres aos quais os dois discursos se referem. Pg. 445

 82. Transcrição do Timeu. De fato, a geração desse cosmo se produziu como mistura constituída por uma combinação de necessidade e de inteligência. E dado que a inteligência dominava a necessidade pelo fato de persuadi-la e por conduzir para o ótimo a maior parte das coisas que se geram, deste modo e por essas razões, por meio da necessidade vencida pela persuação inteligente, foi constituído desde o início este universo. Pg. 447

 83. Sobre o princípio material. Esse princípio, naturalmente, é o que os filósofos naturalistas fizeram coincidir com um dos elementos materiais, e particularmente Empédocles (...) fez coincidir com os quatro elementos (água, ar, terra e fogo).

       A esse respeito, Platão realiza uma das mais notáveis revoluções teoréticas: água, ar, terra e fogo não são elementos origin

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